sexta-feira, abril 09, 2010

Comentando o texto de André e Angie (4)

Queridos,

Mais pitaquinhos nos textos de André e Angie, tá quase acabando: agora discuto as questões relativas a argumentação de ambos sobre os elementos mais propriamente plásticos analisados no corpus adotado pelos autores. Em primeiro lugar, uma observação mais genérica, acho que o trabalho aqui me parece mais descritivo que analítico (ele discrimina as características do suposto estilo em cada um deles, mas não tira quaisquer consequências desta constatação, fato que já mencionei a respeito dos itens anteriores, não é mesmo?).

Em relação ao uso da luz, me parece que a questão da textura em Verger e da relação com a geometria em Cartir-Bresson me parece um escopo muito restrito das significações da obra dos dois: o que estas diferenças nos dizem ou prenunciam, no que respeita o desenvolvimento de uma linhagem mais associação à reportagem visual, de um lado, e a etnofotografia, de outro? Será que a escolha das superfícies sobre as quais a luz age não tem qualquer significação, neste contexto de análise? Me parece que a interpretação de vcs. não consegue ultrapassar o umbral reduzidamente "estético" do fenômeno fotográfico.

Vcs. falam em vetores de leitura nas imagens, mas em nenhum momento colocam em questão as diferenças de abordagem de visualização em Verger e Cartier-Bresson (por exemplo, a frequência com a qual olham as coisas "de cima" ou "de baixo" ou ainda, na linha mesma do olhar). Estes aspectos da organização e do posicionamento do olhar são plasticacmente significativos (isto é, se manifestam em sua significação como dados de plasticidade). Vcs. desconsideram esta dimensão das diferenças entre os dois.

Enfim, acho que há um manancial de questões que decerto poderão gerar um artigo, a partir deste trabalho inicial, mas acho que seria preciso organizar um pouco mais expressamente os propósitos mesmo do texto (a saber, a exploração da discursividade fotográfica, a partir de uma análise dos operadores plásticos desta manifestação, e tendo em vista sempre as linhas de fuga de cada uma dessas obras, na direção dos cânones da foto-reportagem e no regstro etnográfico da fotografia).

Ad,

Benjamim

terça-feira, abril 06, 2010

Comentando o texto de André e Angie (3)

Queridos,

Depois do feriado, mais algumas ponderações sobre o texto de André e Angie, tentando orientar a discussão sobre as diferenças de natureza estilística em ambos: apenas como recordação, reitero que destaquei, nas mensagens anteriores a falta de um enquadramento mais expresso desta análise na questão dos modelos da reportagem visual em cada um deles (e que sugere a matriz do discurso visual no fotojornalismo em um dos casos, da etnografia visual no outro); além disto, considerei o modo como a caracterização dos elementos destacados na análise não explicita o viés plástico da construção do discurso visual nos dois mestres.

Pois bem, agora me interessa destacar dois desses elementos, a geometria e a instabilidade dos motivos fotográficos, em Verger e Cartier-Bresson: em primeiro lugar, sinto que falta esse nível de suficiente reiteração das ligações entre os elementos analisados (distância ou proximidade; instabilidade e composicão), tendo em vista a escolha metodológica da da análise e o quadro mais geral do problema que motiva o exercício (a caracterização do discurso reportativo na fotografia, nestas duas grandes vertentes). Do modo como os elementos estão jogados, fica a impressão de uma certa arbitrariedade da análise, que sabemos não ser o caso.

Além do mais, considero que o termo "instabilidade" é deveras complciado, aqui: no texto que fizemos Carol e eu, esta questão é destacada, a partir da questão sobre o lugar mesmo da instabilidade (ela é propriedade da imagem ou dos objetos apreendidos?). A depender do modo como abordamos esta questão, ela pode ou não nos interessar, na medida em que as escolhas estilísticas estão no horizonte mesmo do exercício. No texto, fala-se de instabilidade como se ela constituisse um dado (empírico? estético?), sem nenhuma conexão com suas possíveis conotações no regime mesmo do discurso visual da fotografia: como se coligam, por exemplo, com a dimensão etnográfica do trabalho de Verger? Falta este nível superior da articulação, sem o qual a análise é mera descrição dos caracteres de cada imagem.

O mesmo ocorre no caso da geometria, com um adendo: de uma maneira geral, o texto não faz recurso à literatura de base, na qual esta questão em especial emerge como um dos traços constitutivos do trabalho de Cartier-Bresson (o texto de Frizot passa em branco, em todo o espectro do argumento sobre a sensibilidade geométrica do mestre do fotojornalismo). Acho fundamental que as idéias da análise se articulem tanto em nível tópico (qual é o problema de fundo do artigo?) quanto em nível heurístico (quais são as teorias de base e de que modo elas são empregadas, na prática da análise?).

Mais comentários a seguir.

Ad,

Benjamim

quinta-feira, abril 01, 2010

Comentando o texto de André e Angie (2)

Queridos,

Aí seguem algumas ponderações a mais sobre o texto de André e Angie, sobre a questão da plasticisdade em Cartier-Bresson e Verger. Detenho-me agora sobre a discussão acerca das escolhas temáticas dos dois fotógrafos. De saída, me parece que a definição mesma de que as temáticas sejam de algum interesse aqui é que me parece suscitar questões: não me parece que a temática de ambos seja algo a que o texto de vcs. deva se dedicar à parte, mas apenas o pressuposto sobre o qual definem o objeto mesmo da reflexão que pretendem, a saber, as matrizes plásticas do discurso visual (as tópicas humanas são apenas o dado de parâmetro para a comparação entre as diferentes abordagens de cada um deles).

Nestes termos, me pareceria mais interessante destacar na definição deste tema comum a ambos aquilo que faz ressoar em cada um deles o viés do etnólogo e o do repórter, e o modo como os operadores da plasticidade podem nos auxiliar na percepção dessas diferenças (por exemplo, o modo como se aproximam ou distanciam dos temas humanos, como valorizam a singularidade étnica dos motivos ou sua generalidade exótica). A mim parece que estas questões mereceriam um ataque da análise, desde seu início, pois a mim parece que vcs. antecedem a abordagem da questão central do texto de muitos pressupostos que vão sendo detalhados até o ponto em que o objeto mesmo já se dissolveu na leitura.

Neste caso, sugiro que esses primeiros párágrafos abordem a questão da temática, mas apontando expressamente a relação entre estas e o propósito mesmo do texto, a saber, chamar a atenção para a dimensão da plasticidade, como traço da estilística e da discursividade visual, própria ao trabalho de ambos.

O início da análise dos aspectos diferenciais deabordagem dos dois fotógrafos não me parece suficiente, à luz daquilo que adota como parâmetro de distinção: decerto que nos exemplos adotaos, a questão da distância e da proximdiade é um aspecto que se destaca como elemento de diferenciação, mas será que sua significação é aquela atribuída na interpretação de vcs., necessariamente (a saber, a distância conotando generalidade, a proximidade significando individuação dos motivos)? Tenho sérias dúvidas quanto a isto, porque há outros momentos em que esta mesma diferenciação acontece (invertidos os polos de Verger e Cartier-Bresson) e sua interpretação pode variar enormemente.


Acho que vcs. deveriam se restringir àquilo que auxilia a pensar a relação entre  as operações no plano da plasticidade e a configuração do sentido discursivo próprio a essas imagens: não se esqueçam, por exemplo, que quase todas elas foram realizadas no contexto da cobertura de acontecimentos, festas e ritos e é isto que ajuda a enquadrar os variados níveis da sensibilidadede cada um doeles com respeito às potencialidades da operação com oa fotografia. Em termos, deve-se perguntar: como é que o homem emerge como assunto fotográfico, uma vez que se valorizam tais ou quais elementos de sua tematização fotográfica?

Para não avançar em excesso, páro por aqui hoje. Amanhã tem mais.

Ad,

Benjamim


terça-feira, março 30, 2010

Comentando o texto de André e Angie (1)

Queridos,

Como prometido no comentário do blog anterior, vou postar, nos próximos dias, alguns comentários mais detalhados sobre o texto de André e Angie, sobre o discurso plástico em Cartier-Bresson e Verger. Como já disse no comentário, o texto é bom e revela qualidades suficientes para, mediante alguns ajustes, correr atrás de um veículo para publicação.

Observação de partida, que vale para todos nós que aqui (espero) escreveremos: se este texto houvesse sido publicado no blog, por assim dizer, aos poucos, talvez pudéssemos ter vivenciado um momentâneo incremento na vida deste blog, já que nos batemos por tanto tempo sobre as razões de sua não-continuidade. Vejo que os outros posts aqui blogados prezam por esta relativa brevidade do formato, sendo que o texto que ora comento nos foi apresentado na sua forma supostamente final, o que me força a esquartejá-lo, antes de tecer considerações sobre ele.

Pois bem, me deterei aqui na introdução do ensaio, quando se enuncia que "o propósito deste texto é observar certos aspectos que compõem os estilos da produção fotográfica de Cartier-Bresson e Verger para analisar alguns atributos da linguagem fotográfica que se coligam aos “modos de ver” de um e outro". Pois bem, não me parece que esta seja a melhor maneira de caracterizar aquilo que leremos, em seguida, no texto de André e Angie: pois a questão da estilística (e sobretudo de suas implicações, no estudo do discuso fotográfico) não compõe, rigorosamente, o assunto desta exploração, senão o quadro de pressupostos no interior do qual a análise se exercita. Não seria melhor apresentar as coisas assim? Ou seja, o objeto da exploração é a motivação do discurso visual nos dois autores, pelo investimento sobre as funções da plasticidade, nesse contexto. A estilística é apenas o pano de fundo desta questão.

Outro aspecto no qual esta introdução confunde seus objetivos com os pressupostos da pesquisa no grupo é quando indica as polêmicas que mantivemos, desde muito cedo, com as orientações linguísticas da semiologia estrutural, em seu modo de abordar o fenômeno fotográfico: além de não ser questão que se desenvolva, no decorrer do texto, enquanto tal, me parece que aqui se compromete a proposição sobre a qual se deseja desenvolver a argumentação da questão. Demarcar assim o ponto de partida da análise não  acarreta qualquer proveito na análise efetiva que vcs. realizar do plano plasticamente formado do discurso visual na fotografia.

Além do mais, estou convencido na prática da leitura desses textos barthesianos que há ali sutilezas e cintilações de uma abordagem semelhante a nossa, que não foram desenvolvidas pelos herdeiros da semiologia de primeira geração, mas que permanecem ali, no stextos, como gemas que pedem uma escavação mais atenta àquilo que, de certo modo, dispõe-se além das fronteiras da jurisdição semiológica. No trabalho da escritura desta parte do retrospecto crítico das teorias da fotografia, quero compartilhar com todos aqui algumas destas minha reavaliações de Barthes. Mas isto é outra história.

Em suma, acho que esta introdução deveria ser retomada, à luz de uma maior explicitação do que se faz efetivamente, a seguir, no texto mesmo, isto é: trazer ao primeiro plano (sem maiores frescuras ou explicitações de preâmbulos) a questão da plasticidade visual e suas funções possíveis na condução do discurso visual fotográfico. Outra coisa: é preciso destacar, na análise destes autores, a função precipuamente reportativa de que a imagem é investida, nos dois casos: decerto não escapa ao olhar de vcs. dois que o contexto da produção fotográfica de Cartier-Bresson e Verger é informação não-negligenciável, na análise que se pode fazer sobre como ambos operam como o registro plástico do discurso visual.

Amanhã tem mais.

Ad,

Benjamim


domingo, março 28, 2010

Estilística e discurso visual: plasticidade, ambiência e iluminação em Pierre Verger e Henri Cartier-Bresson

André Luiz Souza da Silva
Angie Biondi Figueira de Abreu


Resumo: Este texto integra uma pesquisa mais ampla sobre as relações entre dois gêneros do discurso visual: o fotojornalismo e a fotografia documental. Neste artigo propõe-se uma análise sobre os estilos fotográficos de Pierre Verger e Henri Cartier-Bresson, a partir da delimitação de certos aspectos formais em suas obras, como plasticidade, luz e ambiência em seu tratamento com o motivo humano. O propósito é demonstrar como a articulação destes elementos repercute os modos de ver e os modos de ler imagens. Assim é possível estabelecer uma espécie de quadro comparativo entre as duas produções fotográficas.

Palavras-Chave: 1.Discurso visual 2.Pierre Verger 3.Henri Cartier-Bresson

1. Introdução
O propósito deste texto é observar certos aspectos que compõem os estilos da produção fotográfica de Cartier-Bresson e Verger para analisar alguns atributos da linguagem fotográfica que se coligam aos “modos de ver” de um e outro. Este trabalho procura se deter em certas referências formais (da linguagem fotográfica) que auxiliam na observação dos estilos visuais, reconhecendo, em primeira instância, a organização de tais elementos como atributo necessário a um valor propriamente discursivo da imagem em seu tratamento do motivo. Pressupondo que a fotografia apresenta uma atividade organizadora, que é um modo de “construir mundos”, é necessário compreender, portanto, sob quais aspectos ela se organiza.
No entanto, é preciso demarcar que a proposta de uma investigação sobre os aspectos estilísticos em Cartier-Bresson e Verger reivindica certas posições acerca do tipo de abordagem que se faz sobre a imagem. Em primeiro lugar há um esforço maior em compreender os recursos próprios à imagem que se constituem como centros de construção de sentido, ou seja, em sua possibilidade de serem observados não apenas como recursos técnicos necessários à fotografia, mas como portadores de um valor discursivo. Em segundo lugar, a análise trata a imagem como elemento um tanto desvinculado de uma ordem propriamente lingüística, enunciativa, típica de certas vertentes semiológicas muito aplicadas ao estudo das imagens fotográficas, como aquelas desde Barthes em seu ensaio “A mensagem fotográfica”, de 1961. Portanto, a questão não é submeter qualquer regência da imagem aos seus textos e legendas, sobretudo aquelas que constam em publicações de época, como na revista O Cruzeiro, por exemplo, mas reivindicar-lhe certa autonomia.
O propósito deste texto é uma análise comparada da estilística de Cartier-Bresson e Verger, cujos materiais visuais foram privilegiados pela análise da dimensão etnográfica e documental da fotografia. Também se reconhece que estes aspectos, tais como, iluminação, textura, enquadramento, dentre outros, estão organizados numa estrutura discursiva e informacional que compõe o signo fotográfico. Toma-se como pressuposto que há toda uma configuração visual que dispõe suas representações figurativas, ou seja, o tipo de tratamento dispensado ao motivo humano e que é empregado pelo olhar destes dois fotógrafos. Por isso, trata-se de compreender a imagem fotográfica como um discurso mesmo a partir de seus elementos plásticos e figurativos arranjados em uma espécie de processo complementar, quase sensorial, que afeta o plano da expressão e que define seus estilos.

1. Paralelos temáticos em Henri Cartier-Bresson e Pierre Verger
Henri Cartier-Bresson e Pierre Verger dedicaram boa parcela da sua produção em registrar o homem em certos contextos e diversidades culturais. As incursões fotográficas de Cartier-Bresson à China ou ao México, por exemplo, representam passagens por culturas e povos distintos no qual ele exercia, através de sua máquina, o triplo papel de fotógrafo, repórter e etnógrafo. Pierre Verger, por sua vez, no período em que trabalhou como correspondente da revista O Cruzeiro fotografava os indivíduos enfatizando o uso de seus trajes típicos, além de registrar seus momentos cotidianos, como a prática da pesca, os afazeres dos ambulantes nas feiras e ruas de Salvador ou mesmo as festas populares, como o carnaval de Olinda em Pernambuco.
No entanto, ainda que seus materiais visuais incidam sobre a diversidade dos contextos culturais, suas aproximações temáticas, quando um pouco mais apuradas, revelam nuances diferentes .
Assim, de modo preliminar duas características gerais podem ser constatadas nos trabalhos de Cartier-Bresson e Verger e que participam desta articulação entre o que se representa e o como se representa. Em primeiro lugar, ambos têm como principal temática o ser humano. O segundo ponto se refere à produção fotográfica em “tons de cinza”, em preto e branco. De imediato, notar estes dois aspectos nas obras de Cartier-Bresson e Verger requer reconhecer certas implicações tais como a abordagem temática, a ênfase nas formas possibilitada pelas oposições tonais, os contornos específicos dados pelas silhuetas e mesmo a valorização da dimensão plástica.




No que se refere ao homem como temática principal, os materiais visuais apontam estratégias diferentes para a aproximação dos temas e que, conseqüentemente, resulta em imagens (e leituras) diferenciadas. Verger apresenta, por exemplo, em alguns dos seus trabalhos, enquadramentos mais abertos, representando um posicionamento a certa distância dos retratados de modo a captar a naturalidade da ação que se desenrola, como visto nas Figuras 1, 2 e 3. Nas imagens que trazem este distanciamento do motivo, Verger se utiliza da contraluz (e contre plongée) como recurso para destacar as formas dos corpos e objetos de modo a definir suas silhuetas e evidenciar, a partir de sua forma, o tipo de personagem fotografado. Tais imagens permitem, ao espectador, notar a relação entre a definição de um personagem pelo tipo de silhueta que ele dispõe, onde se identifica o personagem pelo contorno de seus desenhos: um feirante, uma baiana, um pescador.
A possibilidade de oferecer um tipo humano pela forma como a luz/sombra se projeta nos corpos também se coliga ao aspecto de generalidade dos seus personagens. Ao recorrer à contraluz, o fotógrafo despreza qualquer ênfase nas expressões do rosto (aliás, não há rostos nestes casos) ou em seus aspectos fisionômicos. Não há individualização ou distinção dos personagens, mas o que surgem são tipos humanos, muito mais ligados às atividades econômicas que desempenham e que destacam sua condição de classe. O olhar de Pierre Verger privilegia, neste tipo de fotografia, ilustrações de personas sociais. O personagem se mostra próximo apenas o suficiente para ser integrado ao ambiente no qual se encontra. Verger não destaca, aqui, nenhum personagem em um “fundo infinito”, mas posiciona-os em seus ambientes e em suas breves situações de atividade cotidiana.
Os objetos, utensílios de trabalho ou indumentárias concorrem para o sentido de integração com suas personagens, de contextualização em seus ambientes típicos. Gaiolas, vasos de flores, portas de igrejas, chapéus, todos estes elementos se mostram integrados conforme seus diversos perfis. O olhar cuidadoso de Verger em destacar as indumentárias e outros materiais como parte complementar dos caracteres pessoais e sociais perpassa todas as imagens. O homem visto em seu meio, o homem visto através de seu meio; pondo uma relação de equivalência entre personagem e ambiente através da contextualização dos cenários, da caracterização dos personagens, dos gestos ou das atitudes expressivas do corpo.
Em Cartier-Bresson, detalhes das indumentárias dos personagens e dos traços faciais reforçam o resultado do seu empenho em conotar as particularidades de um povo, como ocorre nas Figuras 4 e 5. Neste caso, o tipo de abordagem do homem como personagem central (sobretudo em retratos) parece ser tratado de modo diferenciado. Verger se utiliza do recurso do contra luz, mas deixa visível o ambiente e a ação desenvolvida pelo personagem. Já Cartier-Bresson destaca os atributos do personagem em si (características fisionômicas, traços morfológicos do rosto, entre outros), que serve para obter o identificação de seu tipo humano.



Em Cartier-Bresson (Figuras 4 e 5) a apresentação destes personagens se oferece de modo diferente se comparada à caracterização dos personagens de Pierre Verger (Figuras 1, 2 e 3). Os personagens trabalhados nas fotografias de Cartier-Bresson ainda parecem apresentados em certa “estabilidade”, com certo ar de repouso ou de pausa, sem uma implicação direta com a execução de uma tarefa, como visto em Verger. Isto não significa que em Verger não se encontre exemplar do retrato sob este aspecto, mas, ainda assim, a instabilidade do motivo é mais recorrente em seu trabalho, seja pelo registro de um movimento corporal, seja por uma expressão facial mais natural e menos própria de uma pose. Pode-se antecipar o dado de que as fotos de Cartier-Bresson reproduzem o caráter distinto, ou mesmo individual, do personagem, através da definição fisionômica do fotografado, porém, arranjado sob uma composição precisa. Este é o ponto principal da distinção dada ao tratamento do motivo humano nos dois fotógrafos. Cartier-Bresson apura o cuidado com a composição e com o arranjo que os elementos plásticos repercutem no personagem central, como se tudo estivesse sob o controle do olhar fotográfico. Nos casos das Figuras 4 e 5 o componente plástico da pele enrugada e sua relação com as dobras dos tecidos que revestem os corpos propõem uma sensação quase táctil ao espectador. Em Verger o tratamento plástico existe, sobretudo com a luz produzindo o tom brilhante da pele, mas o personagem (mesmo no retrato, com enquadramento fechado) apresenta um quê de instabilidade, de ação, de movimento. Nas fotos de Verger há uma proximidade com o motivo retratado em seus contextos específicos que não se pode rechaçar.



Nas fotos de Verger, o fazer (a baiana que frita bolinhos de acarajé ou os pescadores puxando uma rede, nas Figuras 6 e 7) dos personagens é o que arremata o sentido global das imagens. Nesses casos a representação dos personagens se dá pelas ações que eles produzem e não somente pela sua caracterização física. Em Pierre Verger, a caracterização dos seus personagens e o ambiente no qual se encontram são vistos sempre em situações populares bem típicas: festejos, comemorações, tarefas próprias ou cenas de rua, nos quais seu olhar parece sumarizar o motivo humano (em seus atributos materiais e ambientais) destacado sob a ênfase de certas qualidades plásticas, como luz e contraste. O ser humano é exibido na plenitude de algum fazer. Portanto, as fotografias de Verger indicam a formação de um caráter a partir do seu ambiente.
Em Cartier-Bresson a relação entre personagem e ambiente é tratada para uma espécie de tensionamento, no qual o ambiente não serve ao propósito da contextualização do personagem com seus objetos de cena, já que, em muitas vezes, a visualização do ambiente parece anódina. No entanto, se estabelece como um espaço de tensão, de divisão de planos que delimita o local dos personagens (como para destacá-los em um primeiro plano) ou que, de certa forma, parece contê-los em certo espaço e para certa distância, como se vê na FIG. 8, portanto, dotados de certa composição geométrica.

Resta observar, quanto ao aspecto da ambiência na fotografia de Cartier-Bresson, um outro ponto. Trata-se da conformação dos planos arranjados de modo a estabelecer espaços de tensões (integrados ou em oposição) que resultam numa espécie de geometrismo, pela ênfase que se dá ao efeito das linhas e formas em conjunto, na composição, como mencionado anteriormente a propósito da FIG.8.
Não raro, numa mesma fotografia de Cartier-Bresson é possível notar dois ou mais planos divididos pelos próprios objetos do local conforme o tipo de posicionamento que o fotógrafo seleciona para obter tal efeito. Em muitas de suas fotos o resultado das construções arquitetônicas, da disposição dos objetos e de projeção deles em forma de sombra sobre superfícies planas produz um efeito geométrico. Esse jogo de formas, linhas, curvas e contornos, formam composições de tensões de forças perceptivas dentro da imagem através do claro-escuro da fotografia.
A imagem da FIG.8, por exemplo, apresenta um pequeno grupo de pessoas encostado na parede (ou em um muro de pedra) ocupando toda a porção superior da imagem e um corpo caído no chão, que parece curvado ou contraído, na parte inferior da imagem. Há, portanto, uma divisão da imagem em dois planos, o superior (mais afastado) onde se concentram as pessoas do grupo e um inferior (mais próximo) onde se apresenta o corpo de um homem no chão. Este alinhamento das personagens que divide o espaço de cena em duas porções faz com que a direção do olhar do espectador seja conduzida de um plano a outro. A partir desta observação entre eles percebe-se que há certa relação implícita ou “misteriosa” entre as personagens, que se constitui nesta sobreposição de planos. O corpo do homem no chão adquire um sentido para as personagens do segundo plano que não teria caso fosse visto sozinho na imagem.
O ponto desta relação entre as personagens, e que reforça a expressividade da imagem, diz respeito ao isolamento dos planos na composição, que deixa o corpo do homem destacado no primeiro plano, em um ponto mais próximo do olhar do espectador, delimitado pela calçada, e as outras personagens que se concentram em toda parte superior da imagem, preservada em certa distância do corpo.
Ao mesmo tempo, é esta divisão dos planos que confere a noção de profundidade da imagem, assim como gera a tensão entre os outros elementos dispostos. Um grupo de pessoas, uma faixa vazia ao meio e um homem sozinho em outro plano; o coletivo e o individual presentes na mesma imagem, porém dividindo espaços diferentes, não compartilháveis. Outras imagens, como as da FIG. 9 ou da FIG.16, a seguir, demonstram claramente tal divisão.
Floch (1986), ao analisar uma notória fotografia de Cartier-Bresson (As arenas de Valencia, 1933) já sublinhara esta mesma estrutura de composição e recurso do espaço, explorado pelo olhar de Cartier-Bresson, capaz de estabelecer seu funcionamento narrativo:
Tem-se, na fotografia, uma sucessão de oscilações, um vai-e-vem incessante de valores que não se anulam, mas, antes, dão ao espectador seu sentimento de profundidade. O quadro é percorrido por uma série de vagos empurrões de um ao outro para realizar seu curso fictício à terceira dimensão. FLOCH: 1996 p. 74 (tradução nossa)
O sentido da oposição, da contrariedade presente nas fotografias de Cartier-Bresson, de modo geral, fica por conta da tensão proposta entre estes planos e seus elementos organizados. Por mais que seus personagens se apresentem num caráter mais estável, de repouso (sem alusão à ação direta, como vimos em destaque por Verger), a indicação dinâmica (e mesmo um valor narrativo) funciona por conta da estrutura formal dos planos, subjacente, que arranja seus elementos visuais para o olhar. Do mesmo modo, outras fotografias de Cartier-Bresson jogam com esta estrutura de planos dispondo, muitas vezes, da geometrização e da relação de analogia formal entre objetos e personagens em dado ambiente.



Trata-se de outro aspecto recorrente em Cartier-Bresson; a exploração da distância (maior ou menor dos objetos de cena e dos personagens) de acordo com a atenção ao motivo visual que pretende evidenciar. Em algumas delas fica clara a divisão em planos, que não se mostram independentes uns dos outros, mas estabelecem uma espécie de diálogo e interação que atribui um sentido (de integração ou oposição, mas de tensionamento, de todo modo) à imagem. Em Cartier-Bresson há um predomínio da concepção planimétrica do espaço da representação, da divisão em planos e suas justaposições, que arranja seus personagens, ao passo que Verger se vale das projeções em profundidade (dada pelos estratos de luz e sombra) e volume para conformar seus personagens no espaço de cena.
Se considerarmos as observações de figura-fundo em Wölfflin, veremos que este autor convoca nossa atenção para certos recursos da imagem de modo similar ao que se tem nas fotos de Verger e Cartier-Bresson, cada qual com estilos diferentes no emprego dos recursos. Ao diferenciar o estilo linear do pictórico, Wölfflin identifica, no primeiro, a valorização pela justaposição dos planos, organizados de modo independente entre si e onde geralmente o motivo ocupa a posição central da imagem, de modo que sua apreciação garanta um tipo de leitura linear da composição, conforme notamos em certas imagens de Cartier-Bresson. Já no estilo pictórico, a composição espacial da imagem atua como uma espécie de movimento homogêneo e integrado da frente ao fundo e vice-versa.
Os elementos são arranjados a partir da valorização do sentido de complementaridade entre os planos, “a verdadeira oposição dos estilos, contudo, é obtida apenas no instante em que o observador já não imagina encontrar-se diante de uma sucessão de setores, e a profundidade, em contrapartida, se impõe como experiência imediata, mas se dá naturalmente ao olhar”. (WÖLFFLIN, 2000, p.113). Não parece ser o caso de tomar os dois fotógrafos em contraposição extrema, mas observar certas elaborações visuais concorrentes à compreensão da relação dinâmica entre linha-espaço-percepção-leitura, nos dois trabalhos, mas cada qual em seus propósitos. Em nosso caso, vale ressaltar a verificação desta dinâmica para o efeito visual, a sua leitura, em ambos naquilo que os afasta ou os aproxima.


2. Plasticidade, ambiência e iluminação na fotografia de Cartier-Bresson e Verger
Se seguirmos a definição dos tipos sociais por Verger, vale destacar que a apresentação de seus personagens se dá, também, por um grupo de fotos que privilegia o tratamento da luz, como uma intensidade do brilho na pele de seus personagens. Não mais o contra luz como recurso, mas a presença da luz para ressaltar o que, em Verger, parece ser enfatizado como indumentária imprescindível dos seus personagens: a pele negra. Nas FIGS. 6 e 7, os corpos parecem banhados pela luminosidade intensa presente nas imagens e que os recursos técnicos da câmera favorece ou intensifica. Porém, este brilho na pele não parece indicativo de suor, mas parece inerente ao próprio corpo do personagem, como um tipo de pele que, naturalmente, brilha. Há um privilégio do olhar sobre a baiana na sua tarefa, na fotografia acima (FIG.6), mas sequer distinguimos um traço do seu rosto, há apenas um negrume que se estende corpo (braço) e cabeça. A luminosidade intensa destaca um brilho na pele (muito escura) pelo braço da baiana e que se contrapõe com a alvura da camisa e do chapéu que usa. Nestes exemplos, Verger trabalha o contraste entre preto/branco, claro/escuro tanto pelo recurso tonal próprio ao preto e branco quanto pela relação entre sua pele e suas vestimentas. Assim também ressalta-se o brilho da pele dos pescadores, na imagem acima (FIG.7). Há a projeção de um brilho dado pela luz intensa que se delineia do chapéu, parte do rosto e se estende pelo ombro e dorso do personagem, acompanhando uma sinuosidade sutil com o contorno do seu corpo projetado para um lado. A “cor” da pele é mais caracterizada pelo brilho da luz que incide sobre o corpo do que especificada numa saturação do preto, como o da imagem anterior, FIG.6. Na FIG.7 o tratamento da luz resulta de porções de sombra e de uma claridade muito intensa que são projetadas nos corpos dos pescadores. Este jogo com as gradações da luz que investe os corpos dos personagens faz ressaltar a imagem em seu aspecto de plasticidade. Ao espectador parece possível “sentir” a intensidade do calor do sol sobre a pele, seja como a baiana, seja como o pescador.
Em Cartier-Bresson, quando a luz é trabalhada como um recurso de ênfase, de destaque na fotografia, o que predomina é sua associação com a transparência dos próprios elementos de cena ou então para destacar os personagens em determinado plano. Nas FIGS. 9 e 10, iluminação e transparência se encontram no intuito de firmar os limites interno e externo e conferir, ao mesmo tempo, um tipo de moldura para o plano posterior. Na imagem, interior e exterior se fundem em uma única representação, porém a cada qual é preservada sua função. O observado freqüentemente se torna o próprio observador em um processo de simbiose. Tanto na FIG.9 quanto na FIG.10, o fotógrafo conta com o vidro como um campo de projeção dos olhares e delimitação dos domínios da representação (o que pertence ao interno e externo na imagem). O espectador, em sua posição externa, observa tanto aquele que está dentro de outro ambiente quanto o que ele vê pela imagem que é projetada pelo vidro. Tanto o homem (da FIG.9) quanto a criança (da FIG.10) parecem absortas com o que se passa à sua frente, do lado externo, e que pode ser visto pelas figuras refletidas nas vidraças, seja os arranha-céus da cidade ou o desfile de soldados, graças ao tipo de iluminação (e disposição do material adequado como campo de projeção) proposto por Cartier-Bresson.



Outro aspecto que também deve ser levado em consideração nas fotos de Verger e Cartier-Bresson é um tipo peculiar de plasticidade proposto pelo volume, pela aglomeração dos corpos nas fotografias de multidão. Neste caso, o nível de detalhes de uma pessoa, a face, o corpo, detalhes de roupas, só passa a ser notado pelo espectador em um segundo momento conforme a proximidade (ou não) do motivo. De imediato, o que se vê é um conjunto de corpos/pessoas como se fosse um elemento inteiro, compacto. O que é percebido, inicialmente, é um todo visual formado por objetos ou personagens que compartilham um mesmo espaço com elementos semelhantes entre si.
Na FIG.11, quase não se distinguem as pessoas das decorações retorcidas que compõem a fachada da catedral. As pessoas amontoadas se prostram pela grade e acima dos parapeitos, umas sobre as outras, muito similares pelos trajes ou tipos físicos. Além disso, o modo como estão dispostas parece acompanhar as imagens de pedra que ordenam as paredes da igreja em direção ao alto. A distância do olhar do espectador em relação ao motivo, além da sua concentração, e arranjo, das pessoas num mesmo espaço, provoca uma impressão visual de volume, dada pela aglomeração de pessoas e também de ambigüidade, dada pela “confusão” entre o que é gente e o que é estátua, criando o efeito de indiferenciação irônica entre representação e realidade.



Nesses casos reforça-se o traço do anonimato, pelo menos em uma primeira instância. Em Pierre Verger, em algumas de suas fotos do carnaval de Olinda (FIG.12), por exemplo, predomina o enquadramento aberto como estratégia para mostrar as pessoas sem que, de imediato, sua individualidade seja notada. Este tipo de imagem oferece uma profusão de pessoas fotografadas do alto, aglomeradas em um espaço limitado pelo enquadramento fotográfico de Verger de modo semelhante ao visto em Cartier-Bresson (FIG.11). O resultado dessa condensação de pessoas é análogo ao efeito de uma composição pontilhista. Nestas imagens, (FIG.11 ou 12) o ponto/pessoa não tem valor isoladamente a não ser quando se relaciona e integra com os demais. Essas imagens sugerem, em primeira leitura, uma plasticidade peculiar dada através do volume, pois há uma espécie de massa visual que ocupa todo o espaço do plano e propõe ao olhar um conjunto quase homogêneo de elementos.
Uma outra observação encontrada nas fotografias de Verger é a organização do espaço (e das pessoas) de tal modo a conduzir o olhar a certo ponto dentro da imagem. Assim, é possível encontrar “vetores” para o olhar, isto é, a disposição dos elementos da imagem “aponta” para uma direção na qual sugere um elemento (ou região) destacável, como a ênfase no movimento do personagem que dança o frevo, no centro da roda e da imagem. (FIG.13).



No caso das fotografias que possuem vetores de leitura mais evidentes ou com maior clareza a indicação dos elementos da composição (pessoas, desenhos geométricos do chão) para um personagem central é dada pelo privilégio do posicionamento centralizado ou por estar cercado por espaços vazios, como zonas de intervalo.
Outro aspecto complementar ao recurso plástico e que merece ser analisado nas fotografias de Cartier-Bresson e Verger é a relação ambiente e personagem num plano visual. Se anteriormente foi possível sublinhar, em Verger, a construção do ambiente conforme o tipo humano de suas personagens resta ainda notar como Cartier-Bresson resolve esta relação a partir de outros referenciais e elementos.
Nas imagens seguintes (FIGURAS 14 e 15), as crianças retratadas participam do momento fotográfico com seus olhares que parecem curiosos, tímidos ou envergonhados. Nus, não apenas pela falta de trajes, mas diante do olhar do fotógrafo, como que revelando aos poucos suas aparências à imagem. As disposições dos olhares, nas quais cada criança olha para uma direção diferente (para o espectador, para o extra-campo, para outra criança à frente ou ao lado) também parecem jogar com as atitudes corporais de cada um. Braços, pernas, cabeças, todos se inclinam ou se fixam em posições conforme a direção de seus olhares.
Nas fotos, seus alinhamentos corporais, espaciais e de tamanho definem uma simetria dos personagens, seja das crianças entre si, seja entre elas e o objeto ao redor (como ocorre na FIG.14). Seus contornos, inclinações, posições ou ângulos dialogam entre si. Na última fotografia (FIG.15), ao pedaço de madeira que dá base ao pote esférico é estabelecida uma relação de similaridade entre os "braços" da madeira e os braços do menino à esquerda, formando vetores de ângulos equivalentes.



Ainda em relação ao objeto central da FIG.14, pode-se observar outra similaridade formal entre o ângulo de curva de sua base e a curva do corpo do menino localizado à esquerda, pois ambos parecem compartilhar de uma sinuosidade específica. Também, o pote esférico de barro na metade superior da foto se coloca numa relação com as cabeças dos meninos, auxiliando a formar a relação do objeto com a pose humana, conforme suas características de inclinação e pose. Conforme cada posição das crianças (e delas em relação ao objeto) o sentido de profundidade vai se esboçando para o espectador. A organização precisa dos personagens (e do objeto, na FIG.15) captada conforme o posicionamento do fotógrafo para eles, estabelece a exploração do espaço na imagem.
Nas imagens anteriores de Cartier-Bresson foi possível observar como ele dispõe do espaço e da noção da profundidade tanto pelo arranjo dos personagens, quanto pela divisão dos planos numa mesma fotografia. Resta notar, ainda subseqüente à relação entre ambiente e personagem, uma relação muito peculiar, acerca da textura entre os corpos das crianças e o local (assim como nos objetos) colocada de modo similar, quase extensivo de um ao outro. Sobretudo nas imagens dos garotos, a sugestão da sensação de secura parece inerente ao ambiente e presente em todo o plano da imagem. O corpo coberto de fuligem seca e cinzenta parece extensão do aspecto do solo onde as crianças estão. Seus corpos parecem assumir a extensão do solo em sua aparência seca, cobertos de pó, como que impregnados da mesma matéria do chão.
A relação entre as personagens e o local da cena tem uma força de ênfase e de acentuação um tanto específica, complementar, quando considerada a circunstância de sua produção, pois as crianças reiteram a falta de vida e de perspectiva do solo e vice-versa. Aparentemente, não há diferença entre o elemento humano e o material (terra seca). Os aspectos de simetria, de textura (como uma qualidade plástica), que privilegiam o arranjo dos elementos formais, parecem recursos muito explorados pelo estilo de Cartier-Bresson.



Ainda em Cartier-Bresson, de modo geral, não se evidencia um jogo de luz e sombra que determine a profundidade na imagem, com vimos em Verger, por exemplo, mas quando há uma apresentação de claro/escuro, esta relação se dá para delimitar os planos (os personagens em planos diferentes, justapostos), como na fotografia abaixo (FIG.17).

Na fotografia acima (FIG.17), o efeito de acolhimento ocorre duplamente, tanto pela atitude corporal das mulheres, quanto pela sombra de um guarda sol que recorta o local onde estão as personagens. O principal elemento da foto é esta delimitação de ambiências (íntimo-escuro x externo-claro) através do jogo da luz e que constrói a ambiência da cena na fotografia. Como visto anteriormente, ao notar a função da luz em certas fotografias de Cartier-Bresson pode-se observar sua diferença quanto ao uso da luz em Verger. Pois em Cartier-Bresson não se constata, via de regra, um contraste entre os tons de preto e branco sem que haja uma alusão à divisão e delimitação dos planos, ou mesmo à construção do ambiente, mas a uniformização da luz, principalmente, parece diluir ou dispersar o contraste num tom mais cinzento que o preto, propriamente dito, aspecto, aliás, que remete ao “clima/sensação” de secura ou aridez evidenciado em algumas das imagens acima. (FIGS. 14 e 15)
Por fim, se é possível especificar um modo fotográfico ao estilo de Cartier-Bresson, a atenção à disposição dos elementos plásticos e figurativos de modo a privilegiar a composição se torna uma chave imprescindível em qualquer trabalho de análise. Ao contrário dos que mencionam o valor de uma fotografia jornalística ou documental, seja Cartier-Bresson ou Verger, apenas por seu estatuto ontológico (de veridicção do real) esta pesquisa indica uma outra via possível: a de um efeito de discurso inerente a toda imagem fotográfica, como afirma Floch:
A fotografia não é apenas uma reprodução de uma realidade nem o registro de uma cena. Se esta imagem é narrativa, se há aqui uma narrativa de um flagrante delito é por que a fotografia é, antes de tudo, para Cartier-Bresson, em todo caso, uma composição plástica. A implicação mesma daquele que olha depende menos do fato do crédito que se dá à toda fotografia como uma realidade passiva, mas à realidade de uma construção geométrica rigorosa, mesmo por ser feita num centésimo de segundo. FLOCH: 1996, p. 81-82 (tradução nossa)

Graham Clarke, no início do seu texto The photograph (1997), questiona o modo como lemos fotografias ou ainda em que sentido nos referimos à noção de “olhar” fotos como um simples ato de reconhecimento. Para ele, o equívoco está em atribuirmos o ato de ver como um reconhecimento passivo e não nos darmos conta de que o ato constitui, de fato, uma leitura. Se a fotografia, portanto, é um texto visual, logo admitimos que seu material (assim como qualquer outro texto) envolve relações e uma série de implicações, ambigüidades e problemáticas que se põem entre os seus elementos constitutivos entre si, seus códigos, seus níveis sintáticos e gramaticais, entre outros textos referenciais e também com o leitor/espectador, enfim, em uma estrutura discursiva. É a partir da observação destes elementos fotográficos (da própria imagem) que indicamos alguns dos aspectos do motivo humano conforme o tipo de delineamento dado pelos estilos de Cartier-Bresson e Verger em seus modos de representação fotográfica.

3. Considerações finais
Ainda que o material visual de Cartier-Bresson e Verger compartilhe do mesmo interesse temático, o motivo humano, as estratégias de abordagem funcionam de modo diferente. O modo de compor, a seleção dos elementos de cena, o tipo de angulação, a ênfase na proximidade ou distância dos personagens, o enquadramento eleito, dentre outros aspectos comentados aqui indicam os vários tipos de funcionamento da fotografia como textos visuais. Cartier-Bresson ou Verger não exploraram, apenas, as breves cenas cotidianas de povos diversos, mas ao observar suas fotografias, vê-se toda uma conformação deste olhar sobre e pelo outro. Mais que uma preocupação em categorizar seu método de captura, sua produção fotográfica ou mesmo classificar suas fotos em gêneros (fotojornalismo ou fotodocumental), este texto pretendeu destacar como os aspectos formais da fotografia podem resultar em modos de leitura, como estes aspectos intervém numa relação dialógica entre imagem e recepção.
“O modo como as imagens são recebidas pelo espectador implica uma negociação de sentido que transcende a própria imagem e que se realiza no contexto da cultura e dos textos culturais com que ela convive”. (NOVAES, 2005, p.111) Na tentativa de observar como se estruturam os estilos visuais de Cartier-Bresson e Verger, onde se aproximam ou se distanciam, uma série de elementos salta à compreensão da estrutura representativa do motivo humano. Não só as propriedades internas das imagens: luz, enquadramento, composição dos planos, personagens, gestos, espaço, mas o esforço se pôs na detenção destes elementos como componentes dos aspectos estilísticos em cada artista. Em Verger, por exemplo, vigora um contraste tonal muito mais acentuado se comparado às fotos de Cartier-Bresson. Os personagens quase em forma de silhuetas são reconhecidos aos olhos do observador pela denúncia do seu contorno. O detalhe aqui é desnecessário em troca da prevalência da forma, como enfatiza Cartier-Bresson. Porém, Cartier-Bresson ou Verger sublinham um olhar estético, um falar sobre personagens, povos ou ambientes que combina representação e qualidade plástica. Em ambos, as fotografias vão tecendo um diálogo com o espectador marcado ponto a ponto, elemento a elemento, como um discurso que se constrói em cada plano visual. Em boa medida, tentou-se, neste texto, compreender como se dá esta articulação necessária destes elementos todos para a produção dos tipos de configuração do olhar cultural, seja do fotógrafo, seja do espectador.

4. Referências


CLARKE, Graham. How to read a photograph? In: The Photograph. Oxford: Oxford University Press,1997. p. 27-40.

FLOCH, Jean-Marie. Les formes de l’empreinte. Périgeux: Pierre Fanlac, 1986.

LOPES, Dominic. Aspect recoginition. In: Understanding pictures. Oxford: Claredon Press, 1996. p.111-196./

NOVAES, Sylvia Caiuby. O uso da imagem na antropologia. In: O fotográfico. São Paulo: Senac, 2005. p.107-113.

PICADO, José Benjamim. Duas abordagens sobre imagens e discursividade: pistas para uma semiótica visual. Revista Contemporânea, Salvador, v.2, n.1, p.195-210, junho de 2004.

______. Os desafios metodológicos da leitura de imagens: um exame crítico da semiologia visual. In: Revista Fronteiras Estudos Mediáticos, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p.56-70, 2003.

SNYDER, Joel; ALLEN, Neil. Walsh. Photography, vision and representation. In: BARROW, Thomas F. (Org.). Reading into photography: selected essays 1959-1980. Albuquerque: University of New Mexico, 1987.p.61-91.

SOUTY, Jérôme. A representação do negro nas fotos de Pierre Verger. Disponível em Acesso em 14 dez 2007.

VERGER, Pierre. O olhar viajante de Pierre Fatumbi Verger. Salvador: Editora Fundação Pierre Verger, 2002.

WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Acervo fotográfico da Fundação Pierre Verger, Salvador-BA, disponível em www.pierreverger.org

Acervo fotográfico da Magnum Photos, França, disponível em www.magnumphotos.com

terça-feira, abril 21, 2009

Os desafios do retrato no fotojornalismo

Pensar os regimes do retrato no fotojornalismo

Benjamim Picado

A arte do retrato parece exibir, com maior franqueza do que em outras tópicas visuais do fotojornalismo, as intercalações da rendição instantânea do mundo visual na foto e a versão mais protocolar deste gênero de embargo visual, na arte pictórica. Falsa impressão de simplicidade, entretanto: pois, em primeiro lugar, é a própria noção do que venha a ser um retrato que impõe desafios a pensar sobre o assunto de que falamos, antes mesmo de considerarmos os dispositivos nos quais ele se manifesta (seja o fotográfico, seja o pictórico).

Assim sendo, suponhamos que o gênero do retrato se defina pela finalidade da representação da fisionomia humana, na qual a figura central se constitua para a imagem sob os parâmetros de sua recognoscibilidade possível: para assumir uma tal definição como operatória, precisaríamos primeiro estabelecer que o padrão deste reconhecimento não necessita ser da ordem da identificação do modelo em sua individualidade mais singular, mas eventualmente sob o marco de sua tipologia mais geral (sob critérios que vão da geografia à etnia e à época a que pertencem os retratados, inter alia).




Pierre Verger - "Água de Meninos" (1947)




Youssouf Karsh - "Rei Faiçal" (1945)

Deste modo, deveríamos nos interrogar sobre os regimes nos quais a figuração desta identidade própria ao afigurado são obtidas: seja na foto ou na pintura, o modelo tende a ser rendido ou representado em circunstâncias que o tornem reconhecível, não apenas em sua fisionomia, mas, de certo modo, em seu caráter definidor, fosse este de tipo psicológico, moral, social, geográfico ou histórico. Quando consideramos os primórdios da fotografia, identificamos usualmente na pose o protocolo de base da atitude do retratado, sendo também uma propriedade das primeiras experiências da figuração humana na fotografia, especialmente até o advento das técnicas do instantâneo fotográfico.

Ao contemplarmos, entretanto, alguns exemplares do retratismo fotográfico contemporâneo, vemos que estes aspectos da caracterização do afigurado na fotografia não se realizam do mesmo modo que na pintura e nas primeiras fases do registro fotográfico. Ponhamos as coisas deste modo: a finalidade de desenho de caráter permanece compondo uma espécie de ética do retrato, de tal sorte que representar alguém é atribuir-lhe uma certa distinção (que, de resto, já é marca de origem do retratado, em geral uma figura já-célebre), e que se reforça por procedimentos que, se não são de todo próprios à fotografia, decerto podem ser identificados muito intensamente com o aspecto de instantaneidade da imagem, que é própria ao dispositivo fotográfico. Entretanto, esta é uma questão que desenvolveremos com mais vagar apenas mais adiante.

Um outro aspecto importante deste desafio conceitual no que respeita a definição do retrato (na fotografia ou na pintura) diz respeito a uma certa assimilação da representação fisionômica, no plano do indivíduo que se deixa afigurar na imagem: ora, sob o título do retrato, reservamos espaço também à representação de grupos humanos, como é o caso dos “retratos de família”; mais uma vez, nestes termos, é a questão do reconhecimento fisionômico (seja nos marco da singularidade dos indivíduos ou dos critérios para que sejam tomados como partes de uma aldeia) que faz deste gênero de imagens algo que podemos separar momentaneamente daquelas que exprimem ações e paixões humanas ou ainda a perene estabilidade das paisagens. Mas aqui também, preferimos apenas anunciar o problema, prometendo dele tirar proveito mais adiante, em nossa discussão.

Do ponto de vista da eleição de um certo corpus para o exame do retrato fotográfico, há uma questão adicional interpondo-se aos modos como poderíamos assimilar nesta análise os protocolos da representação fisionômica na história da pintura: no caso das imagens do fotojornalismo, é deveras difícil que dissociemos a arte do retrato do contexto da rendição das ações nas quais se inscreve invariavelmente o recorte da fisionomia de um indivíduo, de tal modo que a questão deste gênero de reconhecimento no fotojornalismo é sempre um elemento auxiliar à representação das circunstâncias nas quais encontramos o modelo da imagem engajado, de modo mais ou menos frequente.

Em outros termos, o reconhecimento fisionômico (seja dele objeto um indivíduo ou um tipo) é algo que, no contexto do fotojornalismo, estará sempre assimilado às funções mais próprias do regime discursivo destas imagens: em seu interior, predomina a noção de que os objetos são rendidos no contexto da ação ou da paixão que se deixam gravar na face e no corpo (e que as imagens assimilam como segmento de uma narração temporalmente mais extensa que o instante materializado no ícone visual). Assim, a questão da fixação dos caracteres pelos quais alguém se deixa apreender numa imagem (e do modo como esta impregnação dos traços do caráter determina uma relativa individuação do motivo de uma representação) é fenômeno dos mais raros, ao menos na família das imagens fotojornalísticas.


Definir o crédito


Arko Data -"Sem título" (2004)

Se tentarmos nos restituir às origens desta operação de base de um retrato de circunstância (como matriz do modo como o fotojornalismo assimila a fisionomia ao contexto das ações), encontraremos aqueles gêneros de retrato que exibem seus modelos numa relação proporcional com algum aspecto definidor de seu caráter (um objeto, uma obra, uma rua, outra pessoa): nestes termos, a fotografia instaura um nível discursivo de atribuições da personalidade do afigurado, e que matriciam um dos regimes comunicacionais do retrato (muito freqüente, por exemplo, na representação da celebridade); diferentemente da pintura, entretanto, os traços que definem a realização deste efeito de caracterização não se encontram no afigurado, ele mesmo (em sua fisionomia, na tonicidade de seus movimentos, ou na sua expressividade corporal ou dos adereços que ele porta), mas no jogo, de algum modo mais próprio (ainda que não exclusivo) à fotografia, entre estes aspectos morfológicos da pessoa e os elementos do mundo material com o qual ela pode estar relacionada, enquanto personagem.


Arnold Newman - "Igor Stravisnky" (1944)

Este retrato de Stravinsky, por Arnold Newman retrata bem esta possibilidade, não absolutamente inerente ao meio fotográfico, mas que lhe parece bem mais apropriada do que as máscaras da representação humana, na pintura de tipos. Aqui, o próprio da figuração é formar o caráter do retratado, a partir de um jogo entre sua atitude corporal (sua pose, que nos recorda, muitas vezes, aqueles protocolos próprios à escultura, desde Rodin), e a caixa do piano (jogo plástico pelo qual se traduz, do mesmo modo, um aspecto de sua própria identificação enquanto músico).

A arte do retrato fotográfico exibe um tensionamento último das relações entre dois protocolos de produção, o fotográfico e o pictórico: tensão esta que se resolve num modo de expressão que é, ao mesmo tempo, documental e dramática, figurativa e narrativa, posto que exibe os traços de definição do representado, a partir da eternização de um segmento do que faz, ou de como se dispõe para o olhar do fotógrafo (e, em última para quem quer que o enxergue, através de seus retratos).

Mas ao realizar esta exibição de um caráter inscrito na própria ação do modelo, a fotografia vai se reunir, na forma mesma do retrato, com um aspecto da visão pictórica, que é o da representação das ações. E, sob este aspecto, dois exemplares do retrato fotográfico (em Robert Capa e Henri Cartier-Bresson), são exemplares de uma nova forma de realização da narrativa pictorial, posta no nível da reciprocidade entre o retratado e quem o vê.


Henri Cartier-Bresson - "Albert Camus" (1947)

Mais adiante, exploraremos precisamente esta questão da reciprocidade na imagem: por ora, entretanto, nos interessa a questão da exploração da temporalidade da fixação dos traços do modelo, como partes da assimilação do retrato a uma forma dramática (isto é, relativa as ações nas quais a fisionomia se deixa render). No caso da imagem de Albert Camus, a questão do retrato, diferentemente dos protocolos usuais da figuração retratista, implica na assimilação do modelo, num grau tal de instantaneidade da rendição da imagem que não permite a modelo controlar os traços de seu caráter que possam se deixar transmitir pela fisionomia.


Robert Capa - "Leon Trotsky at Copenhague" (1932)

Este aspecto fugaz e instável da fixação do caráter, na foto de Cartier-Bresson (especialmente reforçado pelo contraste entre a fixidez da fisionomia e a plasticidade instável do fundo) se exprime ainda mais intensamente na maneira como a expressão gestual de Leon Trotsky se incorpora ao retrato que Capa constrói de seu modelo: aqui, é a energia dos movimentos do revolucionário enquanto discursa para sua platéia que reforçam, no retrato, o caráter que encontraremos doravante associado à sua figura histórica.





sexta-feira, outubro 07, 2005

Luz e ambiência plástica do grotesco na publicidade
Angie Biondi (apresentado em 23/09/05)

Estabelecemos como parti pris da observação acerca do grotesco no campo publicitário a sua inscrição como tema de representações visuais num tom digamos, eufemista. A nossa compreensão sobre o que confere a uma imagem sua classificação estética do grotesco é, já, repertoriada por uma série de imagens e outras manifestações artísticas sedimentadas ao longo do tempo; tudo o que nos dirige a uma repulsa, uma abjeção, um espanto ou mesmo um riso satírico. Há toda uma tradição artística, sobretudo dos campos pictórico e literário, que nos conduziu a algum tipo de experiência com o mundo do grotesco. Dos mais conhecidos, Goya ou Brueghel, tanto quanto Edgar Allan Poe, dentre outros, nos possibilitam reconhecer algo muito próximo do grotesco, mas que na publicidade são delimitadas apenas suas nuances, contornos do grotesco que são sugeridos num tipo de regime discursivo muito próprio deste campo; o da retórica. Contudo, nesta visada rápida do tema procuramos nos deter brevemente sobre o modo como o grotesco nos é apresentado (e logicamente, representado) em peças publicitárias a partir da luminosidade empregada à imagem.
Tomamos como exemplo esta peça de campanha da marca Diesel Jeans.













A luz constrói o espaço disponível para aquilo que se reconhece como plano visível da imagem num conjugado entre luz e sombra. Esta combinação modela a forma dos objetos, evidencia contornos e confere certa profundidade à imagem de acordo com as diferentes concentrações no espaço visual, nas regiões que a luz incide. Podemos dizer que o modo como a luz destaca os objetos de cena também estabelece a relação com o espectador, provoca uma posição de interação com aquele que vê a imagem. A luz recorta, modela o plano, e posiciona o espectador para a imagem; é a luz que dispõe seu enquadramento. Trata-se de uma iluminação dirigida, orientada sobre pontos ou aspectos dos corpos cuja gradação marca um determinado aspecto e deixa evidente sua presença de modo incidente e não inerente.

Nesta imagem grotesca os objetos de cena são destacados por um tratamento da luz na peça, eles são sempre banhados pela luz sobre um fundo escuro. Aqueles que são destacados na imagem (nos quais a luz incide) superam o nível de claridade média que possuem os demais objetos. Apenas quando nos aproximamos um pouco mais da imagem começamos a notar outros componentes deste cenário, começamos a explorá-lo de acordo com o que a luz nos permite; braços e pernas esquartejados, uma fornalha, um brilho num plástico preto que sugere o contorno de um corpo envolto dependurado de ponta-cabeça, mas, sobretudo o enfoque na ação que é sugerida: um homem que serra uma parte de um corpo humano.

Todo o espaço é assim marcado por uma penumbra, a imagem é revestida por um aspecto sombrio e o destaque para a ação do personagem sugere, para o espectador, uma tensão representada pela iminência do próximo corte. A parca visibilidade nos dá ainda a impressão de um lugar sujo, cheio do que nos parece ser pedaços de corpos espalhados junto a outros objetos que cobrem o chão, alguns outros pendurados ou fixados pelas paredes do lugar representado. Em toda sua obscuridade, podemos apenas ter uma impressão sobre as coisas ali dispostas, pois esta imagem conta com nossa disposição para ver nela o que apenas nos parece ser “induzida” ou “sugerida” pela ambientação que a luz instaurou previamente, aquilo que Gombrich designou de “princípio do etc”.

Tão logo nos instalemos no local da representação, tão logo somos “acolhidos” pelo ambiente da imagem, os objetos que mal podemos distinguir passam a ser “certos” para nosso reconhecimento. Podemos inferir que são pedaços de corpos humanos ao invés de cogitarmos a possibilidade de ser bonecos, manequins de prova simplesmente, pois só “nos deixamos” sair do efeito de espanto quando percorremos outros elementos da peça, como os textos, a logomarca, enfim. Este jogo ambíguo é explorado como estratégia em muitas outras peças, a tensão que se instaura, para o espectador, fica no limiar entre o ambiente e os objetos (ou personagens), marca uma dualidade entre real e ficcional, entre um estado de lucidez ou consciência e um estado onírico ou fantasioso.

A luz não é dado exterior da imagem, mas é elemento compositivo e que tem uma finalidade específica: a de fixar o tema. O grotesco é representado através da ambiência promovida pelo tipo de luminosidade empregado às imagens, que, neste caso, se relaciona diretamente com o tema figurativizado e lhe confere um sentido. O grotesco observado aqui é muito mais da ordem de uma sensação, da instauração de certo clima sombrio, que produz um efeito de estranhamento ou de um absurdo, quase ‘sinistro’ à imagem, que a pura representação de certos objetos de cena. Podemos constatar, portanto, que a luz goza de certa autonomia na imagem e é através deste elemento que o sentido do grotesco se instaura.

Não devemos esquecer que grotesco vem do italiano grotta, que se remete à gruta, ao obscuro, ao abismal. Portanto, nossa perspectiva em relação à luminosidade segue esta mesma construção de sentido retomada aqui pela publicidade; um elemento plástico que trabalha a imagem para remeter a dimensão duma ambiência noturna, lúgubre, capaz de gerar um tipo específico de efeito ao espectador. Ademais, o que nos constituiu enquanto conhecimento (ainda que medíocre) sobre o grotesco é aqui manifestado pelo que poderíamos chamar de “metáfora da luz”, pois esta há muito é investida de um valor simbólico, a tensão entre luz e trevas sempre representou, em nossa sociedade ocidental cristã, o conflito entre bem e mal, o alto e o baixo; a publicidade apenas nos reenvia a este jogo de forças quando programa seu efeito.

terça-feira, agosto 16, 2005

Da iconicidade à plasticidade gráfica do instantâneo:
o mistério do testemunho fotográfico da ação











Jacques-Henri Lartigue, Grand Prix de l'A.C.F. (1912)

Ao nos defrontarmos com este notável exemplar da modernidade, em termos da arte fotográfica (é nestes termos que John Sarkovsky se refere à descoberta que faz de Lartigue, no início dos anos 60 do último século), somos quase sempre tomados, de início, pelo considerável peso dos comentários e críticas, que ressaltam, no fascínio que esta imagem é capaz de nos provocar, a ação indelével do dispositivo de geração, próprio à fotografia: para muitos destes autores, o que se vê na imagem é a comprovação das teses que favorecem o lugar dos mecanismos de captação, próprios ao dispostivo fotográfico, como elementos estruturantes do modo como esta imagem funciona, na perspectiva de seus efeitos de sentido.

Assim sendo, esta sensação de fugacidade e de instantaneidade da ação que a fotografia nos lega não nos seria compreensível, sem a concorrência de um certo saber acerca do dispositivo de gênese da imagem: sem o conhecimento daquilo que Jean-Marie Schaeffer chamava de "arché da fotografia", não teríamos, na visão destes autores, como nos haver com a capacidade desta imagem em especificar um momento da ação, arrestando-a de sua dimensão temporal, mas indexando sua integridade na forma de um instante sugestivo.

De modo a não vagarmos em discussões por demais teóricas, procuremos nos deter sobre esta magnífica imagem, em si mesma. O que vemos aqui? De certo modo, temos ilustrada nesta imagem uma questão que, para certos historiadores da arte (penso especialmente em Gombrich), caracteriza a "dimensão subjetiva do olhar testemunhal" (e que, no caso da pintura, notabilizou-se pela arte do Impressionismo, por sua vez, contemporânea da origem da fotografia). Nesta imagem de Lartigue, o efeito de um certo modo da disposição do aparato fotográfico é o de suscitar uma impressão subjetiva (não necessariamente pessoal ou individual) da velocidade com a qual o bólido se deixa apreender na visão (esta impressão é reforçada, por exemplo, pelo próprio sentido de organização do principal motivo visual da imagem, o automóvel, que se deixa apanhar apenas extremidade final do campo visual, já saindo do espaço de nossa visão).

Neste caso, o fato de que esta maneira de especificar o instante, arrestando-o de sua dimensão temporal, pareça algo exlusiva ao dispositivo fotográfico é de importância relativamente menor, quando comparada com o princípio estrutural da subjetivação desta impressão: aqui (como nas imagens fotográficas do Dia D, por Robert Capa), o caráter de instantaneidade tem menos relação com as propriedades do aparato técnico do que com a necessidade de infundir na apreciação da imagem toda a ordem de sensações que parece marcar a própria relação do olhar com seus motivos (uma espécie de sinestesia visual). Sabemos que, se a fotografia decerto conseguiu especificar um modo de se alcançar este efeito, isto não acarreta grandes alterações, entretanto, no modo de este mesmo efeito se estruturar, uma vez voltado para os repertórios da recepção (basta pensarmos nas imagens impressionistas e nas técnicas de sfumatto, do período da Renascença, para nos darmos conta da extensa linhagem originária deste tipo de imagem).

O aspecto mais interessante desta fotografia, entretanto, não está vinculado às características, digamos, internas, deste ícone: não é portanto, naquilo que podemos supor de iconicamente modelado nesta imagem que reside a força com a qual ela se impõe, para nós (ou, ao menos, para nosso interesse mais específico, a saber, o de avaliar as implicações destas operações modelares em outros contextos discursivos); o que nos interesse apreciar, do ponto de vista da análise da fotografia, são os aspectos de vetorialização da imagem, e que funcionam, por sua vez, como indicadores de uma organização gráfica (ligada aos princípios que regerão sua inserção no espaço da página impressa, à qual a fotografia (e uma série de outros tipos de imagem) podem estar submetidas, sobretudo no contexto da comunicação mediática.










"Hooked on Speed", Life Magazine, 1963

Para analisarmos este ponto, precisamos considerar a fotografia, não apenas na sua constituição enquanto veículo de representação do que quer que seja, mas também como unidade de um discurso visual consideravelmente mais complexo: precisamos avaliar a função desta imagem nos contextos gráficos com os quais ela eventualmente negocia, procurando analisar os sentidos em que aqueles aspectos de sua modelação icônica podem aqui funcionar como índices de seu encaixe no universo gráfico da página. Alguns comentadores fazem apelo à dimensão “tabular” do espaço da página, de modo a atribuir uma função significante ao suporte impresso, função esta que passa a regenciar, inclusive, as apropriações da matéria icônica da fotografia, no contexto enunciativo propriamente dito das matérias jornalísticas.

No caso da foto de Lartigue, em particular, é precisamente esta qualidade de “feliz acidente” da imagem (característica de praticamente toda e qualquer obra-prima do fotojornalismo), com todos os aspectos de incorreção formal aí implicados (a concentração da composição em uma parte específica do plano visual, os problemas de processamento da imagem, a fixação do tema em condições de instabilidade) que confere a ela as qualidades de um ícone que sugere, por assim dizer, sua complementação por um discurso gráfico; a qualidade fisicamente impressa de instantaneidade confere ao ícone uma capacidade de coligar-se ao universo gráfico da imagem que possui paralelos, a meu ver, com a lógica do discurso visual dos quadrinhos, que funciona dentro dos mesmos princípios tabulares de constituição.

Em especial, notamos dois aspectos da imagem que favorecem seu agenciamento plástico, para além das funções puramente icônicas de modelação para a representação: de um lado, o fato de que a concentração da composição se acumula apenas em uma das partes da imagem (o fato de que sentimos um certo desequilíbrio da imagem, em uma das direções apenas do plano) favorece a que o discurso enunciativo explore precisamente o espaço vazio gerado por este modo da composição; em segundo lugar, a vetorialidade da própria imagem favorece a um tipo de efeito, na composição gráfica da página, que sugere o prolongamento da ação capturada, nos planos seguintes (o que se deixa entrever pelo fato de que a composição da página privilegia que a foto esteja no ponto final de nosso vetor habitual de letura, da esquerda para a direita).

sábado, agosto 13, 2005

O arresto do gesto na fotografia









Ian Bradshaw, The Twickenham Streaker, 1974

O propósito de analisar esta imagem se liga à questão do modo como se relacionam, nas teorias da fotografia, o estatuto do testemunho ocular e a suposta indexicalidade da imagem fotográfica, em virtude da natureza de seu dispositivo mecânico de geração. Em nosso modo de entender, a análise do "efeito de discurso" na fotografia poderia ter relação com formas de apreciá-la que estão ligadas à sua constituição enquanto ícone visual.

Detemo-nos, por ora, na questão do gesto capturado na presente foto ("The Twickenham Streaker", de Ian Bradshaw, 1974), e nas chaves pictóricas que sua apreiação nos faz mobilizar: o valor dos gestos aqui exibidos tem menos relações com os aspectos de dispositivo, que caracterizam a "filogênese" da imagem, e mais com um sistema da representação da atitude humana em cena (muito especialmente, o capítulo dos gestos), e que nos remete aos aspectos de "ontogênese" da fotografia, e que são, por sua vez, relativamemnte independentes de sua relação com seus aparatos técnicos.

Há, em primeiro lugar, uma relação entre o modo do arresto que a imagem propicia aos gestos das personagens, e sua função de indicação de uma atitude discursiva (isto é, o fato de que o gesto suplementa, no corpo da imagem, a informação de que as figuras em cena estão a conversar entre si).

Esta questão do valor discursivo do gesto na representação visual deve ser explorada em dois sentidos principais: em primeiro lugar, há nesta foto um evidente aspecto de retorização visual da atitude humana, associado à incorporação discursiva das atitudes corporais das personagens; seus gestos dizem respeito a uma propriedade da representação das ações humanas que se repercute sobre a expressão propriamente verbal das personagens, no campo das ações; o gesto da mão direita do homem nu tem evidente redundância com o ato mesmo da conversação que ele mantém com o policial.

As formas da realização deste efeito são certamente variáveis: vão desde a pura conceitualidade gestual, na arte cristã do medievo, na qual as atitudes corporais têm a função predominante de fixar o caráter geral das personagens, até o alto grau de individuação psicológica das disposições e de encarnação física das ações, a partir da Renascença. Isto posto, entretanto, não nos resta dúvidas de que reconhecer nos gestos das personagens desta foto seu devido valor retórico não decorre da pregnância com a qual o registro fotográfico as firmou numa superfície sensível, mas dos hábitos perceptivos com os quais reconhecemos o valor de redundância das atitudes corporais das personagens.

Neste nível de sua manifestação, podemos dizer que a gestualidade incorpora-se à compreensão, dado o fato de que a individuação de suas funções é relativa a um sistema de convenções: o gesto da personagem não se confunde com um ato de indicar o que quer que seja, mas com o do protocolo retórico daquele que pede a palavra, ou mesmo a pronuncia. Neste último caso, o gestual adotado tem um sentido de reforço ou de ênfase ao registro propriamente verbal do discurso retórico. Um modo possível de enquadrar este aspecto da significação gestual é o de reconhecer, especialmente em seu emprego na representação visual, sua dimensão de ato ritualizado: na perspectiva de certos historiadores da arte, é o caráter ritualístico de certos gestos que oferece à pintura os materiais pelos quais a apresentação dinâmica dos motivos, na percepção, será selecionada para a representação pictórica.

Mas a questão da representação dos gestos não pode estar restrita ao domínio da convencionalidade da compreensão das atitudes corporais: melhor dizendo, não é apenas por restituir-se à ordem ritualizada dos gestos que o compreendemos, na economia própria do discurso visual; concorrem também para sua visão outros aspectos da expressão gestual, como aqueles que dizem respeito à tradução de estados interiores, de emoções e de disposições à ação.

Seu efeito, no plano da apreciação estética, não é da ordem de uma correspondência com um gesto já codificado no plano de um rito específico (os atos de indicar, orar, cumprimentar, pedir a palavra), mas como tradução de um estado de espírito, por sua vez encarnado em operadores que não são correspondentes a nenhuma destas ações específicas. Na fotografia que analisamos, esta ordem de questões sobre o sentido gestual se deixa verificar pela função que atribuímos às mãos que agarram o personagem principal, à sua direita e à sua esquerda.

Nestes gestos, não encontramos qualquer correspondência ritualística para servir de base à leitura de suas funções no contexto da composição visual: seu sentido mais evidente diz respeito à expressão, iconicamente modelada, de uma certa força física com a qual os soldados detêm a personagem principal. Do ponto de vista da representação, estes gestos possuem um significado que é mais expressional e sintomático do que simbólico (não compreendemos seu sentido por restituí-lo a uma chave interpretativa determinada nas funções ritualísticas do gesto, mas, por participarmos simpaticamente do sofrimento desta personagem).

Começamos a nos restituir lentamente, aqui, ao centro da questão que nos está motivando a tematizar a fotografia na perspectiva do testemunho: trata-se da interrogação sobre o caráter vicário da experiência que esta imagem nos lega; pois, ainda que, no caso da fotografia, ela seja oriunda de um dispositivo que supostamente autentica a realidade (antes de representá-la), no caso do efeito que estes gestos assim fotografados nos suscitam, a estrutura da experiência que lega a estes seu devido valor expressivo é rigorosamente a mesma na qual poderíamos suprir a sensação do padecimento que é própria á experiência afetiva da pintura.

Muito embora, no caso da foto, esta função expressional do gesto não encontre repercussão aparente (por exemplo, numa fisionomia que denote a dor ou o incômodo da personagem em relação a seus antagonistas), ainda assim podemos restituir sua função, na economia da composição, como similar àquela que é típica da iconografia da paixão do Cristo (em Ticiano, por exemplo), e pela qual notamos o sofrimento de Jesus por correlacionarmos suas expressões de dor com a forte ação de seus algozes, expressa visualmente com bastante ênfase: neste ponto, nos damos conta de que a representação dos gestos, longe de apenas nos restituir ao significado mais fortemente normatizado nos ritos, também serve à produção de um efeito de experiência vicária de testemunho, de simpatia sensorial, igualmente através da figuração das ações humanas.

quinta-feira, agosto 04, 2005


testando, um dois três, brócoli. com uma imagem, também.