sábado, agosto 13, 2005

O arresto do gesto na fotografia









Ian Bradshaw, The Twickenham Streaker, 1974

O propósito de analisar esta imagem se liga à questão do modo como se relacionam, nas teorias da fotografia, o estatuto do testemunho ocular e a suposta indexicalidade da imagem fotográfica, em virtude da natureza de seu dispositivo mecânico de geração. Em nosso modo de entender, a análise do "efeito de discurso" na fotografia poderia ter relação com formas de apreciá-la que estão ligadas à sua constituição enquanto ícone visual.

Detemo-nos, por ora, na questão do gesto capturado na presente foto ("The Twickenham Streaker", de Ian Bradshaw, 1974), e nas chaves pictóricas que sua apreiação nos faz mobilizar: o valor dos gestos aqui exibidos tem menos relações com os aspectos de dispositivo, que caracterizam a "filogênese" da imagem, e mais com um sistema da representação da atitude humana em cena (muito especialmente, o capítulo dos gestos), e que nos remete aos aspectos de "ontogênese" da fotografia, e que são, por sua vez, relativamemnte independentes de sua relação com seus aparatos técnicos.

Há, em primeiro lugar, uma relação entre o modo do arresto que a imagem propicia aos gestos das personagens, e sua função de indicação de uma atitude discursiva (isto é, o fato de que o gesto suplementa, no corpo da imagem, a informação de que as figuras em cena estão a conversar entre si).

Esta questão do valor discursivo do gesto na representação visual deve ser explorada em dois sentidos principais: em primeiro lugar, há nesta foto um evidente aspecto de retorização visual da atitude humana, associado à incorporação discursiva das atitudes corporais das personagens; seus gestos dizem respeito a uma propriedade da representação das ações humanas que se repercute sobre a expressão propriamente verbal das personagens, no campo das ações; o gesto da mão direita do homem nu tem evidente redundância com o ato mesmo da conversação que ele mantém com o policial.

As formas da realização deste efeito são certamente variáveis: vão desde a pura conceitualidade gestual, na arte cristã do medievo, na qual as atitudes corporais têm a função predominante de fixar o caráter geral das personagens, até o alto grau de individuação psicológica das disposições e de encarnação física das ações, a partir da Renascença. Isto posto, entretanto, não nos resta dúvidas de que reconhecer nos gestos das personagens desta foto seu devido valor retórico não decorre da pregnância com a qual o registro fotográfico as firmou numa superfície sensível, mas dos hábitos perceptivos com os quais reconhecemos o valor de redundância das atitudes corporais das personagens.

Neste nível de sua manifestação, podemos dizer que a gestualidade incorpora-se à compreensão, dado o fato de que a individuação de suas funções é relativa a um sistema de convenções: o gesto da personagem não se confunde com um ato de indicar o que quer que seja, mas com o do protocolo retórico daquele que pede a palavra, ou mesmo a pronuncia. Neste último caso, o gestual adotado tem um sentido de reforço ou de ênfase ao registro propriamente verbal do discurso retórico. Um modo possível de enquadrar este aspecto da significação gestual é o de reconhecer, especialmente em seu emprego na representação visual, sua dimensão de ato ritualizado: na perspectiva de certos historiadores da arte, é o caráter ritualístico de certos gestos que oferece à pintura os materiais pelos quais a apresentação dinâmica dos motivos, na percepção, será selecionada para a representação pictórica.

Mas a questão da representação dos gestos não pode estar restrita ao domínio da convencionalidade da compreensão das atitudes corporais: melhor dizendo, não é apenas por restituir-se à ordem ritualizada dos gestos que o compreendemos, na economia própria do discurso visual; concorrem também para sua visão outros aspectos da expressão gestual, como aqueles que dizem respeito à tradução de estados interiores, de emoções e de disposições à ação.

Seu efeito, no plano da apreciação estética, não é da ordem de uma correspondência com um gesto já codificado no plano de um rito específico (os atos de indicar, orar, cumprimentar, pedir a palavra), mas como tradução de um estado de espírito, por sua vez encarnado em operadores que não são correspondentes a nenhuma destas ações específicas. Na fotografia que analisamos, esta ordem de questões sobre o sentido gestual se deixa verificar pela função que atribuímos às mãos que agarram o personagem principal, à sua direita e à sua esquerda.

Nestes gestos, não encontramos qualquer correspondência ritualística para servir de base à leitura de suas funções no contexto da composição visual: seu sentido mais evidente diz respeito à expressão, iconicamente modelada, de uma certa força física com a qual os soldados detêm a personagem principal. Do ponto de vista da representação, estes gestos possuem um significado que é mais expressional e sintomático do que simbólico (não compreendemos seu sentido por restituí-lo a uma chave interpretativa determinada nas funções ritualísticas do gesto, mas, por participarmos simpaticamente do sofrimento desta personagem).

Começamos a nos restituir lentamente, aqui, ao centro da questão que nos está motivando a tematizar a fotografia na perspectiva do testemunho: trata-se da interrogação sobre o caráter vicário da experiência que esta imagem nos lega; pois, ainda que, no caso da fotografia, ela seja oriunda de um dispositivo que supostamente autentica a realidade (antes de representá-la), no caso do efeito que estes gestos assim fotografados nos suscitam, a estrutura da experiência que lega a estes seu devido valor expressivo é rigorosamente a mesma na qual poderíamos suprir a sensação do padecimento que é própria á experiência afetiva da pintura.

Muito embora, no caso da foto, esta função expressional do gesto não encontre repercussão aparente (por exemplo, numa fisionomia que denote a dor ou o incômodo da personagem em relação a seus antagonistas), ainda assim podemos restituir sua função, na economia da composição, como similar àquela que é típica da iconografia da paixão do Cristo (em Ticiano, por exemplo), e pela qual notamos o sofrimento de Jesus por correlacionarmos suas expressões de dor com a forte ação de seus algozes, expressa visualmente com bastante ênfase: neste ponto, nos damos conta de que a representação dos gestos, longe de apenas nos restituir ao significado mais fortemente normatizado nos ritos, também serve à produção de um efeito de experiência vicária de testemunho, de simpatia sensorial, igualmente através da figuração das ações humanas.

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