domingo, março 28, 2010

Estilística e discurso visual: plasticidade, ambiência e iluminação em Pierre Verger e Henri Cartier-Bresson

André Luiz Souza da Silva
Angie Biondi Figueira de Abreu


Resumo: Este texto integra uma pesquisa mais ampla sobre as relações entre dois gêneros do discurso visual: o fotojornalismo e a fotografia documental. Neste artigo propõe-se uma análise sobre os estilos fotográficos de Pierre Verger e Henri Cartier-Bresson, a partir da delimitação de certos aspectos formais em suas obras, como plasticidade, luz e ambiência em seu tratamento com o motivo humano. O propósito é demonstrar como a articulação destes elementos repercute os modos de ver e os modos de ler imagens. Assim é possível estabelecer uma espécie de quadro comparativo entre as duas produções fotográficas.

Palavras-Chave: 1.Discurso visual 2.Pierre Verger 3.Henri Cartier-Bresson

1. Introdução
O propósito deste texto é observar certos aspectos que compõem os estilos da produção fotográfica de Cartier-Bresson e Verger para analisar alguns atributos da linguagem fotográfica que se coligam aos “modos de ver” de um e outro. Este trabalho procura se deter em certas referências formais (da linguagem fotográfica) que auxiliam na observação dos estilos visuais, reconhecendo, em primeira instância, a organização de tais elementos como atributo necessário a um valor propriamente discursivo da imagem em seu tratamento do motivo. Pressupondo que a fotografia apresenta uma atividade organizadora, que é um modo de “construir mundos”, é necessário compreender, portanto, sob quais aspectos ela se organiza.
No entanto, é preciso demarcar que a proposta de uma investigação sobre os aspectos estilísticos em Cartier-Bresson e Verger reivindica certas posições acerca do tipo de abordagem que se faz sobre a imagem. Em primeiro lugar há um esforço maior em compreender os recursos próprios à imagem que se constituem como centros de construção de sentido, ou seja, em sua possibilidade de serem observados não apenas como recursos técnicos necessários à fotografia, mas como portadores de um valor discursivo. Em segundo lugar, a análise trata a imagem como elemento um tanto desvinculado de uma ordem propriamente lingüística, enunciativa, típica de certas vertentes semiológicas muito aplicadas ao estudo das imagens fotográficas, como aquelas desde Barthes em seu ensaio “A mensagem fotográfica”, de 1961. Portanto, a questão não é submeter qualquer regência da imagem aos seus textos e legendas, sobretudo aquelas que constam em publicações de época, como na revista O Cruzeiro, por exemplo, mas reivindicar-lhe certa autonomia.
O propósito deste texto é uma análise comparada da estilística de Cartier-Bresson e Verger, cujos materiais visuais foram privilegiados pela análise da dimensão etnográfica e documental da fotografia. Também se reconhece que estes aspectos, tais como, iluminação, textura, enquadramento, dentre outros, estão organizados numa estrutura discursiva e informacional que compõe o signo fotográfico. Toma-se como pressuposto que há toda uma configuração visual que dispõe suas representações figurativas, ou seja, o tipo de tratamento dispensado ao motivo humano e que é empregado pelo olhar destes dois fotógrafos. Por isso, trata-se de compreender a imagem fotográfica como um discurso mesmo a partir de seus elementos plásticos e figurativos arranjados em uma espécie de processo complementar, quase sensorial, que afeta o plano da expressão e que define seus estilos.

1. Paralelos temáticos em Henri Cartier-Bresson e Pierre Verger
Henri Cartier-Bresson e Pierre Verger dedicaram boa parcela da sua produção em registrar o homem em certos contextos e diversidades culturais. As incursões fotográficas de Cartier-Bresson à China ou ao México, por exemplo, representam passagens por culturas e povos distintos no qual ele exercia, através de sua máquina, o triplo papel de fotógrafo, repórter e etnógrafo. Pierre Verger, por sua vez, no período em que trabalhou como correspondente da revista O Cruzeiro fotografava os indivíduos enfatizando o uso de seus trajes típicos, além de registrar seus momentos cotidianos, como a prática da pesca, os afazeres dos ambulantes nas feiras e ruas de Salvador ou mesmo as festas populares, como o carnaval de Olinda em Pernambuco.
No entanto, ainda que seus materiais visuais incidam sobre a diversidade dos contextos culturais, suas aproximações temáticas, quando um pouco mais apuradas, revelam nuances diferentes .
Assim, de modo preliminar duas características gerais podem ser constatadas nos trabalhos de Cartier-Bresson e Verger e que participam desta articulação entre o que se representa e o como se representa. Em primeiro lugar, ambos têm como principal temática o ser humano. O segundo ponto se refere à produção fotográfica em “tons de cinza”, em preto e branco. De imediato, notar estes dois aspectos nas obras de Cartier-Bresson e Verger requer reconhecer certas implicações tais como a abordagem temática, a ênfase nas formas possibilitada pelas oposições tonais, os contornos específicos dados pelas silhuetas e mesmo a valorização da dimensão plástica.




No que se refere ao homem como temática principal, os materiais visuais apontam estratégias diferentes para a aproximação dos temas e que, conseqüentemente, resulta em imagens (e leituras) diferenciadas. Verger apresenta, por exemplo, em alguns dos seus trabalhos, enquadramentos mais abertos, representando um posicionamento a certa distância dos retratados de modo a captar a naturalidade da ação que se desenrola, como visto nas Figuras 1, 2 e 3. Nas imagens que trazem este distanciamento do motivo, Verger se utiliza da contraluz (e contre plongée) como recurso para destacar as formas dos corpos e objetos de modo a definir suas silhuetas e evidenciar, a partir de sua forma, o tipo de personagem fotografado. Tais imagens permitem, ao espectador, notar a relação entre a definição de um personagem pelo tipo de silhueta que ele dispõe, onde se identifica o personagem pelo contorno de seus desenhos: um feirante, uma baiana, um pescador.
A possibilidade de oferecer um tipo humano pela forma como a luz/sombra se projeta nos corpos também se coliga ao aspecto de generalidade dos seus personagens. Ao recorrer à contraluz, o fotógrafo despreza qualquer ênfase nas expressões do rosto (aliás, não há rostos nestes casos) ou em seus aspectos fisionômicos. Não há individualização ou distinção dos personagens, mas o que surgem são tipos humanos, muito mais ligados às atividades econômicas que desempenham e que destacam sua condição de classe. O olhar de Pierre Verger privilegia, neste tipo de fotografia, ilustrações de personas sociais. O personagem se mostra próximo apenas o suficiente para ser integrado ao ambiente no qual se encontra. Verger não destaca, aqui, nenhum personagem em um “fundo infinito”, mas posiciona-os em seus ambientes e em suas breves situações de atividade cotidiana.
Os objetos, utensílios de trabalho ou indumentárias concorrem para o sentido de integração com suas personagens, de contextualização em seus ambientes típicos. Gaiolas, vasos de flores, portas de igrejas, chapéus, todos estes elementos se mostram integrados conforme seus diversos perfis. O olhar cuidadoso de Verger em destacar as indumentárias e outros materiais como parte complementar dos caracteres pessoais e sociais perpassa todas as imagens. O homem visto em seu meio, o homem visto através de seu meio; pondo uma relação de equivalência entre personagem e ambiente através da contextualização dos cenários, da caracterização dos personagens, dos gestos ou das atitudes expressivas do corpo.
Em Cartier-Bresson, detalhes das indumentárias dos personagens e dos traços faciais reforçam o resultado do seu empenho em conotar as particularidades de um povo, como ocorre nas Figuras 4 e 5. Neste caso, o tipo de abordagem do homem como personagem central (sobretudo em retratos) parece ser tratado de modo diferenciado. Verger se utiliza do recurso do contra luz, mas deixa visível o ambiente e a ação desenvolvida pelo personagem. Já Cartier-Bresson destaca os atributos do personagem em si (características fisionômicas, traços morfológicos do rosto, entre outros), que serve para obter o identificação de seu tipo humano.



Em Cartier-Bresson (Figuras 4 e 5) a apresentação destes personagens se oferece de modo diferente se comparada à caracterização dos personagens de Pierre Verger (Figuras 1, 2 e 3). Os personagens trabalhados nas fotografias de Cartier-Bresson ainda parecem apresentados em certa “estabilidade”, com certo ar de repouso ou de pausa, sem uma implicação direta com a execução de uma tarefa, como visto em Verger. Isto não significa que em Verger não se encontre exemplar do retrato sob este aspecto, mas, ainda assim, a instabilidade do motivo é mais recorrente em seu trabalho, seja pelo registro de um movimento corporal, seja por uma expressão facial mais natural e menos própria de uma pose. Pode-se antecipar o dado de que as fotos de Cartier-Bresson reproduzem o caráter distinto, ou mesmo individual, do personagem, através da definição fisionômica do fotografado, porém, arranjado sob uma composição precisa. Este é o ponto principal da distinção dada ao tratamento do motivo humano nos dois fotógrafos. Cartier-Bresson apura o cuidado com a composição e com o arranjo que os elementos plásticos repercutem no personagem central, como se tudo estivesse sob o controle do olhar fotográfico. Nos casos das Figuras 4 e 5 o componente plástico da pele enrugada e sua relação com as dobras dos tecidos que revestem os corpos propõem uma sensação quase táctil ao espectador. Em Verger o tratamento plástico existe, sobretudo com a luz produzindo o tom brilhante da pele, mas o personagem (mesmo no retrato, com enquadramento fechado) apresenta um quê de instabilidade, de ação, de movimento. Nas fotos de Verger há uma proximidade com o motivo retratado em seus contextos específicos que não se pode rechaçar.



Nas fotos de Verger, o fazer (a baiana que frita bolinhos de acarajé ou os pescadores puxando uma rede, nas Figuras 6 e 7) dos personagens é o que arremata o sentido global das imagens. Nesses casos a representação dos personagens se dá pelas ações que eles produzem e não somente pela sua caracterização física. Em Pierre Verger, a caracterização dos seus personagens e o ambiente no qual se encontram são vistos sempre em situações populares bem típicas: festejos, comemorações, tarefas próprias ou cenas de rua, nos quais seu olhar parece sumarizar o motivo humano (em seus atributos materiais e ambientais) destacado sob a ênfase de certas qualidades plásticas, como luz e contraste. O ser humano é exibido na plenitude de algum fazer. Portanto, as fotografias de Verger indicam a formação de um caráter a partir do seu ambiente.
Em Cartier-Bresson a relação entre personagem e ambiente é tratada para uma espécie de tensionamento, no qual o ambiente não serve ao propósito da contextualização do personagem com seus objetos de cena, já que, em muitas vezes, a visualização do ambiente parece anódina. No entanto, se estabelece como um espaço de tensão, de divisão de planos que delimita o local dos personagens (como para destacá-los em um primeiro plano) ou que, de certa forma, parece contê-los em certo espaço e para certa distância, como se vê na FIG. 8, portanto, dotados de certa composição geométrica.

Resta observar, quanto ao aspecto da ambiência na fotografia de Cartier-Bresson, um outro ponto. Trata-se da conformação dos planos arranjados de modo a estabelecer espaços de tensões (integrados ou em oposição) que resultam numa espécie de geometrismo, pela ênfase que se dá ao efeito das linhas e formas em conjunto, na composição, como mencionado anteriormente a propósito da FIG.8.
Não raro, numa mesma fotografia de Cartier-Bresson é possível notar dois ou mais planos divididos pelos próprios objetos do local conforme o tipo de posicionamento que o fotógrafo seleciona para obter tal efeito. Em muitas de suas fotos o resultado das construções arquitetônicas, da disposição dos objetos e de projeção deles em forma de sombra sobre superfícies planas produz um efeito geométrico. Esse jogo de formas, linhas, curvas e contornos, formam composições de tensões de forças perceptivas dentro da imagem através do claro-escuro da fotografia.
A imagem da FIG.8, por exemplo, apresenta um pequeno grupo de pessoas encostado na parede (ou em um muro de pedra) ocupando toda a porção superior da imagem e um corpo caído no chão, que parece curvado ou contraído, na parte inferior da imagem. Há, portanto, uma divisão da imagem em dois planos, o superior (mais afastado) onde se concentram as pessoas do grupo e um inferior (mais próximo) onde se apresenta o corpo de um homem no chão. Este alinhamento das personagens que divide o espaço de cena em duas porções faz com que a direção do olhar do espectador seja conduzida de um plano a outro. A partir desta observação entre eles percebe-se que há certa relação implícita ou “misteriosa” entre as personagens, que se constitui nesta sobreposição de planos. O corpo do homem no chão adquire um sentido para as personagens do segundo plano que não teria caso fosse visto sozinho na imagem.
O ponto desta relação entre as personagens, e que reforça a expressividade da imagem, diz respeito ao isolamento dos planos na composição, que deixa o corpo do homem destacado no primeiro plano, em um ponto mais próximo do olhar do espectador, delimitado pela calçada, e as outras personagens que se concentram em toda parte superior da imagem, preservada em certa distância do corpo.
Ao mesmo tempo, é esta divisão dos planos que confere a noção de profundidade da imagem, assim como gera a tensão entre os outros elementos dispostos. Um grupo de pessoas, uma faixa vazia ao meio e um homem sozinho em outro plano; o coletivo e o individual presentes na mesma imagem, porém dividindo espaços diferentes, não compartilháveis. Outras imagens, como as da FIG. 9 ou da FIG.16, a seguir, demonstram claramente tal divisão.
Floch (1986), ao analisar uma notória fotografia de Cartier-Bresson (As arenas de Valencia, 1933) já sublinhara esta mesma estrutura de composição e recurso do espaço, explorado pelo olhar de Cartier-Bresson, capaz de estabelecer seu funcionamento narrativo:
Tem-se, na fotografia, uma sucessão de oscilações, um vai-e-vem incessante de valores que não se anulam, mas, antes, dão ao espectador seu sentimento de profundidade. O quadro é percorrido por uma série de vagos empurrões de um ao outro para realizar seu curso fictício à terceira dimensão. FLOCH: 1996 p. 74 (tradução nossa)
O sentido da oposição, da contrariedade presente nas fotografias de Cartier-Bresson, de modo geral, fica por conta da tensão proposta entre estes planos e seus elementos organizados. Por mais que seus personagens se apresentem num caráter mais estável, de repouso (sem alusão à ação direta, como vimos em destaque por Verger), a indicação dinâmica (e mesmo um valor narrativo) funciona por conta da estrutura formal dos planos, subjacente, que arranja seus elementos visuais para o olhar. Do mesmo modo, outras fotografias de Cartier-Bresson jogam com esta estrutura de planos dispondo, muitas vezes, da geometrização e da relação de analogia formal entre objetos e personagens em dado ambiente.



Trata-se de outro aspecto recorrente em Cartier-Bresson; a exploração da distância (maior ou menor dos objetos de cena e dos personagens) de acordo com a atenção ao motivo visual que pretende evidenciar. Em algumas delas fica clara a divisão em planos, que não se mostram independentes uns dos outros, mas estabelecem uma espécie de diálogo e interação que atribui um sentido (de integração ou oposição, mas de tensionamento, de todo modo) à imagem. Em Cartier-Bresson há um predomínio da concepção planimétrica do espaço da representação, da divisão em planos e suas justaposições, que arranja seus personagens, ao passo que Verger se vale das projeções em profundidade (dada pelos estratos de luz e sombra) e volume para conformar seus personagens no espaço de cena.
Se considerarmos as observações de figura-fundo em Wölfflin, veremos que este autor convoca nossa atenção para certos recursos da imagem de modo similar ao que se tem nas fotos de Verger e Cartier-Bresson, cada qual com estilos diferentes no emprego dos recursos. Ao diferenciar o estilo linear do pictórico, Wölfflin identifica, no primeiro, a valorização pela justaposição dos planos, organizados de modo independente entre si e onde geralmente o motivo ocupa a posição central da imagem, de modo que sua apreciação garanta um tipo de leitura linear da composição, conforme notamos em certas imagens de Cartier-Bresson. Já no estilo pictórico, a composição espacial da imagem atua como uma espécie de movimento homogêneo e integrado da frente ao fundo e vice-versa.
Os elementos são arranjados a partir da valorização do sentido de complementaridade entre os planos, “a verdadeira oposição dos estilos, contudo, é obtida apenas no instante em que o observador já não imagina encontrar-se diante de uma sucessão de setores, e a profundidade, em contrapartida, se impõe como experiência imediata, mas se dá naturalmente ao olhar”. (WÖLFFLIN, 2000, p.113). Não parece ser o caso de tomar os dois fotógrafos em contraposição extrema, mas observar certas elaborações visuais concorrentes à compreensão da relação dinâmica entre linha-espaço-percepção-leitura, nos dois trabalhos, mas cada qual em seus propósitos. Em nosso caso, vale ressaltar a verificação desta dinâmica para o efeito visual, a sua leitura, em ambos naquilo que os afasta ou os aproxima.


2. Plasticidade, ambiência e iluminação na fotografia de Cartier-Bresson e Verger
Se seguirmos a definição dos tipos sociais por Verger, vale destacar que a apresentação de seus personagens se dá, também, por um grupo de fotos que privilegia o tratamento da luz, como uma intensidade do brilho na pele de seus personagens. Não mais o contra luz como recurso, mas a presença da luz para ressaltar o que, em Verger, parece ser enfatizado como indumentária imprescindível dos seus personagens: a pele negra. Nas FIGS. 6 e 7, os corpos parecem banhados pela luminosidade intensa presente nas imagens e que os recursos técnicos da câmera favorece ou intensifica. Porém, este brilho na pele não parece indicativo de suor, mas parece inerente ao próprio corpo do personagem, como um tipo de pele que, naturalmente, brilha. Há um privilégio do olhar sobre a baiana na sua tarefa, na fotografia acima (FIG.6), mas sequer distinguimos um traço do seu rosto, há apenas um negrume que se estende corpo (braço) e cabeça. A luminosidade intensa destaca um brilho na pele (muito escura) pelo braço da baiana e que se contrapõe com a alvura da camisa e do chapéu que usa. Nestes exemplos, Verger trabalha o contraste entre preto/branco, claro/escuro tanto pelo recurso tonal próprio ao preto e branco quanto pela relação entre sua pele e suas vestimentas. Assim também ressalta-se o brilho da pele dos pescadores, na imagem acima (FIG.7). Há a projeção de um brilho dado pela luz intensa que se delineia do chapéu, parte do rosto e se estende pelo ombro e dorso do personagem, acompanhando uma sinuosidade sutil com o contorno do seu corpo projetado para um lado. A “cor” da pele é mais caracterizada pelo brilho da luz que incide sobre o corpo do que especificada numa saturação do preto, como o da imagem anterior, FIG.6. Na FIG.7 o tratamento da luz resulta de porções de sombra e de uma claridade muito intensa que são projetadas nos corpos dos pescadores. Este jogo com as gradações da luz que investe os corpos dos personagens faz ressaltar a imagem em seu aspecto de plasticidade. Ao espectador parece possível “sentir” a intensidade do calor do sol sobre a pele, seja como a baiana, seja como o pescador.
Em Cartier-Bresson, quando a luz é trabalhada como um recurso de ênfase, de destaque na fotografia, o que predomina é sua associação com a transparência dos próprios elementos de cena ou então para destacar os personagens em determinado plano. Nas FIGS. 9 e 10, iluminação e transparência se encontram no intuito de firmar os limites interno e externo e conferir, ao mesmo tempo, um tipo de moldura para o plano posterior. Na imagem, interior e exterior se fundem em uma única representação, porém a cada qual é preservada sua função. O observado freqüentemente se torna o próprio observador em um processo de simbiose. Tanto na FIG.9 quanto na FIG.10, o fotógrafo conta com o vidro como um campo de projeção dos olhares e delimitação dos domínios da representação (o que pertence ao interno e externo na imagem). O espectador, em sua posição externa, observa tanto aquele que está dentro de outro ambiente quanto o que ele vê pela imagem que é projetada pelo vidro. Tanto o homem (da FIG.9) quanto a criança (da FIG.10) parecem absortas com o que se passa à sua frente, do lado externo, e que pode ser visto pelas figuras refletidas nas vidraças, seja os arranha-céus da cidade ou o desfile de soldados, graças ao tipo de iluminação (e disposição do material adequado como campo de projeção) proposto por Cartier-Bresson.



Outro aspecto que também deve ser levado em consideração nas fotos de Verger e Cartier-Bresson é um tipo peculiar de plasticidade proposto pelo volume, pela aglomeração dos corpos nas fotografias de multidão. Neste caso, o nível de detalhes de uma pessoa, a face, o corpo, detalhes de roupas, só passa a ser notado pelo espectador em um segundo momento conforme a proximidade (ou não) do motivo. De imediato, o que se vê é um conjunto de corpos/pessoas como se fosse um elemento inteiro, compacto. O que é percebido, inicialmente, é um todo visual formado por objetos ou personagens que compartilham um mesmo espaço com elementos semelhantes entre si.
Na FIG.11, quase não se distinguem as pessoas das decorações retorcidas que compõem a fachada da catedral. As pessoas amontoadas se prostram pela grade e acima dos parapeitos, umas sobre as outras, muito similares pelos trajes ou tipos físicos. Além disso, o modo como estão dispostas parece acompanhar as imagens de pedra que ordenam as paredes da igreja em direção ao alto. A distância do olhar do espectador em relação ao motivo, além da sua concentração, e arranjo, das pessoas num mesmo espaço, provoca uma impressão visual de volume, dada pela aglomeração de pessoas e também de ambigüidade, dada pela “confusão” entre o que é gente e o que é estátua, criando o efeito de indiferenciação irônica entre representação e realidade.



Nesses casos reforça-se o traço do anonimato, pelo menos em uma primeira instância. Em Pierre Verger, em algumas de suas fotos do carnaval de Olinda (FIG.12), por exemplo, predomina o enquadramento aberto como estratégia para mostrar as pessoas sem que, de imediato, sua individualidade seja notada. Este tipo de imagem oferece uma profusão de pessoas fotografadas do alto, aglomeradas em um espaço limitado pelo enquadramento fotográfico de Verger de modo semelhante ao visto em Cartier-Bresson (FIG.11). O resultado dessa condensação de pessoas é análogo ao efeito de uma composição pontilhista. Nestas imagens, (FIG.11 ou 12) o ponto/pessoa não tem valor isoladamente a não ser quando se relaciona e integra com os demais. Essas imagens sugerem, em primeira leitura, uma plasticidade peculiar dada através do volume, pois há uma espécie de massa visual que ocupa todo o espaço do plano e propõe ao olhar um conjunto quase homogêneo de elementos.
Uma outra observação encontrada nas fotografias de Verger é a organização do espaço (e das pessoas) de tal modo a conduzir o olhar a certo ponto dentro da imagem. Assim, é possível encontrar “vetores” para o olhar, isto é, a disposição dos elementos da imagem “aponta” para uma direção na qual sugere um elemento (ou região) destacável, como a ênfase no movimento do personagem que dança o frevo, no centro da roda e da imagem. (FIG.13).



No caso das fotografias que possuem vetores de leitura mais evidentes ou com maior clareza a indicação dos elementos da composição (pessoas, desenhos geométricos do chão) para um personagem central é dada pelo privilégio do posicionamento centralizado ou por estar cercado por espaços vazios, como zonas de intervalo.
Outro aspecto complementar ao recurso plástico e que merece ser analisado nas fotografias de Cartier-Bresson e Verger é a relação ambiente e personagem num plano visual. Se anteriormente foi possível sublinhar, em Verger, a construção do ambiente conforme o tipo humano de suas personagens resta ainda notar como Cartier-Bresson resolve esta relação a partir de outros referenciais e elementos.
Nas imagens seguintes (FIGURAS 14 e 15), as crianças retratadas participam do momento fotográfico com seus olhares que parecem curiosos, tímidos ou envergonhados. Nus, não apenas pela falta de trajes, mas diante do olhar do fotógrafo, como que revelando aos poucos suas aparências à imagem. As disposições dos olhares, nas quais cada criança olha para uma direção diferente (para o espectador, para o extra-campo, para outra criança à frente ou ao lado) também parecem jogar com as atitudes corporais de cada um. Braços, pernas, cabeças, todos se inclinam ou se fixam em posições conforme a direção de seus olhares.
Nas fotos, seus alinhamentos corporais, espaciais e de tamanho definem uma simetria dos personagens, seja das crianças entre si, seja entre elas e o objeto ao redor (como ocorre na FIG.14). Seus contornos, inclinações, posições ou ângulos dialogam entre si. Na última fotografia (FIG.15), ao pedaço de madeira que dá base ao pote esférico é estabelecida uma relação de similaridade entre os "braços" da madeira e os braços do menino à esquerda, formando vetores de ângulos equivalentes.



Ainda em relação ao objeto central da FIG.14, pode-se observar outra similaridade formal entre o ângulo de curva de sua base e a curva do corpo do menino localizado à esquerda, pois ambos parecem compartilhar de uma sinuosidade específica. Também, o pote esférico de barro na metade superior da foto se coloca numa relação com as cabeças dos meninos, auxiliando a formar a relação do objeto com a pose humana, conforme suas características de inclinação e pose. Conforme cada posição das crianças (e delas em relação ao objeto) o sentido de profundidade vai se esboçando para o espectador. A organização precisa dos personagens (e do objeto, na FIG.15) captada conforme o posicionamento do fotógrafo para eles, estabelece a exploração do espaço na imagem.
Nas imagens anteriores de Cartier-Bresson foi possível observar como ele dispõe do espaço e da noção da profundidade tanto pelo arranjo dos personagens, quanto pela divisão dos planos numa mesma fotografia. Resta notar, ainda subseqüente à relação entre ambiente e personagem, uma relação muito peculiar, acerca da textura entre os corpos das crianças e o local (assim como nos objetos) colocada de modo similar, quase extensivo de um ao outro. Sobretudo nas imagens dos garotos, a sugestão da sensação de secura parece inerente ao ambiente e presente em todo o plano da imagem. O corpo coberto de fuligem seca e cinzenta parece extensão do aspecto do solo onde as crianças estão. Seus corpos parecem assumir a extensão do solo em sua aparência seca, cobertos de pó, como que impregnados da mesma matéria do chão.
A relação entre as personagens e o local da cena tem uma força de ênfase e de acentuação um tanto específica, complementar, quando considerada a circunstância de sua produção, pois as crianças reiteram a falta de vida e de perspectiva do solo e vice-versa. Aparentemente, não há diferença entre o elemento humano e o material (terra seca). Os aspectos de simetria, de textura (como uma qualidade plástica), que privilegiam o arranjo dos elementos formais, parecem recursos muito explorados pelo estilo de Cartier-Bresson.



Ainda em Cartier-Bresson, de modo geral, não se evidencia um jogo de luz e sombra que determine a profundidade na imagem, com vimos em Verger, por exemplo, mas quando há uma apresentação de claro/escuro, esta relação se dá para delimitar os planos (os personagens em planos diferentes, justapostos), como na fotografia abaixo (FIG.17).

Na fotografia acima (FIG.17), o efeito de acolhimento ocorre duplamente, tanto pela atitude corporal das mulheres, quanto pela sombra de um guarda sol que recorta o local onde estão as personagens. O principal elemento da foto é esta delimitação de ambiências (íntimo-escuro x externo-claro) através do jogo da luz e que constrói a ambiência da cena na fotografia. Como visto anteriormente, ao notar a função da luz em certas fotografias de Cartier-Bresson pode-se observar sua diferença quanto ao uso da luz em Verger. Pois em Cartier-Bresson não se constata, via de regra, um contraste entre os tons de preto e branco sem que haja uma alusão à divisão e delimitação dos planos, ou mesmo à construção do ambiente, mas a uniformização da luz, principalmente, parece diluir ou dispersar o contraste num tom mais cinzento que o preto, propriamente dito, aspecto, aliás, que remete ao “clima/sensação” de secura ou aridez evidenciado em algumas das imagens acima. (FIGS. 14 e 15)
Por fim, se é possível especificar um modo fotográfico ao estilo de Cartier-Bresson, a atenção à disposição dos elementos plásticos e figurativos de modo a privilegiar a composição se torna uma chave imprescindível em qualquer trabalho de análise. Ao contrário dos que mencionam o valor de uma fotografia jornalística ou documental, seja Cartier-Bresson ou Verger, apenas por seu estatuto ontológico (de veridicção do real) esta pesquisa indica uma outra via possível: a de um efeito de discurso inerente a toda imagem fotográfica, como afirma Floch:
A fotografia não é apenas uma reprodução de uma realidade nem o registro de uma cena. Se esta imagem é narrativa, se há aqui uma narrativa de um flagrante delito é por que a fotografia é, antes de tudo, para Cartier-Bresson, em todo caso, uma composição plástica. A implicação mesma daquele que olha depende menos do fato do crédito que se dá à toda fotografia como uma realidade passiva, mas à realidade de uma construção geométrica rigorosa, mesmo por ser feita num centésimo de segundo. FLOCH: 1996, p. 81-82 (tradução nossa)

Graham Clarke, no início do seu texto The photograph (1997), questiona o modo como lemos fotografias ou ainda em que sentido nos referimos à noção de “olhar” fotos como um simples ato de reconhecimento. Para ele, o equívoco está em atribuirmos o ato de ver como um reconhecimento passivo e não nos darmos conta de que o ato constitui, de fato, uma leitura. Se a fotografia, portanto, é um texto visual, logo admitimos que seu material (assim como qualquer outro texto) envolve relações e uma série de implicações, ambigüidades e problemáticas que se põem entre os seus elementos constitutivos entre si, seus códigos, seus níveis sintáticos e gramaticais, entre outros textos referenciais e também com o leitor/espectador, enfim, em uma estrutura discursiva. É a partir da observação destes elementos fotográficos (da própria imagem) que indicamos alguns dos aspectos do motivo humano conforme o tipo de delineamento dado pelos estilos de Cartier-Bresson e Verger em seus modos de representação fotográfica.

3. Considerações finais
Ainda que o material visual de Cartier-Bresson e Verger compartilhe do mesmo interesse temático, o motivo humano, as estratégias de abordagem funcionam de modo diferente. O modo de compor, a seleção dos elementos de cena, o tipo de angulação, a ênfase na proximidade ou distância dos personagens, o enquadramento eleito, dentre outros aspectos comentados aqui indicam os vários tipos de funcionamento da fotografia como textos visuais. Cartier-Bresson ou Verger não exploraram, apenas, as breves cenas cotidianas de povos diversos, mas ao observar suas fotografias, vê-se toda uma conformação deste olhar sobre e pelo outro. Mais que uma preocupação em categorizar seu método de captura, sua produção fotográfica ou mesmo classificar suas fotos em gêneros (fotojornalismo ou fotodocumental), este texto pretendeu destacar como os aspectos formais da fotografia podem resultar em modos de leitura, como estes aspectos intervém numa relação dialógica entre imagem e recepção.
“O modo como as imagens são recebidas pelo espectador implica uma negociação de sentido que transcende a própria imagem e que se realiza no contexto da cultura e dos textos culturais com que ela convive”. (NOVAES, 2005, p.111) Na tentativa de observar como se estruturam os estilos visuais de Cartier-Bresson e Verger, onde se aproximam ou se distanciam, uma série de elementos salta à compreensão da estrutura representativa do motivo humano. Não só as propriedades internas das imagens: luz, enquadramento, composição dos planos, personagens, gestos, espaço, mas o esforço se pôs na detenção destes elementos como componentes dos aspectos estilísticos em cada artista. Em Verger, por exemplo, vigora um contraste tonal muito mais acentuado se comparado às fotos de Cartier-Bresson. Os personagens quase em forma de silhuetas são reconhecidos aos olhos do observador pela denúncia do seu contorno. O detalhe aqui é desnecessário em troca da prevalência da forma, como enfatiza Cartier-Bresson. Porém, Cartier-Bresson ou Verger sublinham um olhar estético, um falar sobre personagens, povos ou ambientes que combina representação e qualidade plástica. Em ambos, as fotografias vão tecendo um diálogo com o espectador marcado ponto a ponto, elemento a elemento, como um discurso que se constrói em cada plano visual. Em boa medida, tentou-se, neste texto, compreender como se dá esta articulação necessária destes elementos todos para a produção dos tipos de configuração do olhar cultural, seja do fotógrafo, seja do espectador.

4. Referências


CLARKE, Graham. How to read a photograph? In: The Photograph. Oxford: Oxford University Press,1997. p. 27-40.

FLOCH, Jean-Marie. Les formes de l’empreinte. Périgeux: Pierre Fanlac, 1986.

LOPES, Dominic. Aspect recoginition. In: Understanding pictures. Oxford: Claredon Press, 1996. p.111-196./

NOVAES, Sylvia Caiuby. O uso da imagem na antropologia. In: O fotográfico. São Paulo: Senac, 2005. p.107-113.

PICADO, José Benjamim. Duas abordagens sobre imagens e discursividade: pistas para uma semiótica visual. Revista Contemporânea, Salvador, v.2, n.1, p.195-210, junho de 2004.

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VERGER, Pierre. O olhar viajante de Pierre Fatumbi Verger. Salvador: Editora Fundação Pierre Verger, 2002.

WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Acervo fotográfico da Fundação Pierre Verger, Salvador-BA, disponível em www.pierreverger.org

Acervo fotográfico da Magnum Photos, França, disponível em www.magnumphotos.com

2 comentários:

Benjamim Picado disse...

Angie e André, queridos,

Gostei muito do texto, no geral e acho que, com os devidos ajustes, poderíamos pensar em algum veículo para sua publicação.

Faço algumas considerações mais genéricas: ainda que o tema esteja bem definido e recortado, acho que a sub-divisão dos itens poderia contemplar uma maior especificação dos tópicos da argumentação.

Por outro lado, acho que seria bom repensar o título do artigo, em função de seu tema central, a saber, a questão do discurso plástico, em Verger e Cartier-Bresson. Acho que introduzir a estilística no título falseia os propósitos do texto e sobrepõe-se ao tema de outro de nossos artigos (precisamente o que estou em vias de completar), sobre o status do estilo na fotografia documental.

No que respeita os detalhes do texto de vcs., postarei alguns blogs nos próximos dias, dissecando o texto, ponto-a-ponto, de modo que vcs. possam arrematá-lo, para que pensemos em algum veículo para sua publicação.

Ad,

Benjamim

païva disse...

Opa... que bom encontrar a fotografia levada a sério! Muito bom!
Aproveito para jogar um livro na "fogueira" destas e outras reflexões sobre a fotografia: o livro "estética da fotografia - perda e permanência" do prof. François Soulages, publicado neste ano pela editora do SENAC... recomendo, principalmente depois de assisti-lo em um seminário que ocorreu nesta semana em Florianópolis.