terça-feira, agosto 16, 2005

Da iconicidade à plasticidade gráfica do instantâneo:
o mistério do testemunho fotográfico da ação











Jacques-Henri Lartigue, Grand Prix de l'A.C.F. (1912)

Ao nos defrontarmos com este notável exemplar da modernidade, em termos da arte fotográfica (é nestes termos que John Sarkovsky se refere à descoberta que faz de Lartigue, no início dos anos 60 do último século), somos quase sempre tomados, de início, pelo considerável peso dos comentários e críticas, que ressaltam, no fascínio que esta imagem é capaz de nos provocar, a ação indelével do dispositivo de geração, próprio à fotografia: para muitos destes autores, o que se vê na imagem é a comprovação das teses que favorecem o lugar dos mecanismos de captação, próprios ao dispostivo fotográfico, como elementos estruturantes do modo como esta imagem funciona, na perspectiva de seus efeitos de sentido.

Assim sendo, esta sensação de fugacidade e de instantaneidade da ação que a fotografia nos lega não nos seria compreensível, sem a concorrência de um certo saber acerca do dispositivo de gênese da imagem: sem o conhecimento daquilo que Jean-Marie Schaeffer chamava de "arché da fotografia", não teríamos, na visão destes autores, como nos haver com a capacidade desta imagem em especificar um momento da ação, arrestando-a de sua dimensão temporal, mas indexando sua integridade na forma de um instante sugestivo.

De modo a não vagarmos em discussões por demais teóricas, procuremos nos deter sobre esta magnífica imagem, em si mesma. O que vemos aqui? De certo modo, temos ilustrada nesta imagem uma questão que, para certos historiadores da arte (penso especialmente em Gombrich), caracteriza a "dimensão subjetiva do olhar testemunhal" (e que, no caso da pintura, notabilizou-se pela arte do Impressionismo, por sua vez, contemporânea da origem da fotografia). Nesta imagem de Lartigue, o efeito de um certo modo da disposição do aparato fotográfico é o de suscitar uma impressão subjetiva (não necessariamente pessoal ou individual) da velocidade com a qual o bólido se deixa apreender na visão (esta impressão é reforçada, por exemplo, pelo próprio sentido de organização do principal motivo visual da imagem, o automóvel, que se deixa apanhar apenas extremidade final do campo visual, já saindo do espaço de nossa visão).

Neste caso, o fato de que esta maneira de especificar o instante, arrestando-o de sua dimensão temporal, pareça algo exlusiva ao dispositivo fotográfico é de importância relativamente menor, quando comparada com o princípio estrutural da subjetivação desta impressão: aqui (como nas imagens fotográficas do Dia D, por Robert Capa), o caráter de instantaneidade tem menos relação com as propriedades do aparato técnico do que com a necessidade de infundir na apreciação da imagem toda a ordem de sensações que parece marcar a própria relação do olhar com seus motivos (uma espécie de sinestesia visual). Sabemos que, se a fotografia decerto conseguiu especificar um modo de se alcançar este efeito, isto não acarreta grandes alterações, entretanto, no modo de este mesmo efeito se estruturar, uma vez voltado para os repertórios da recepção (basta pensarmos nas imagens impressionistas e nas técnicas de sfumatto, do período da Renascença, para nos darmos conta da extensa linhagem originária deste tipo de imagem).

O aspecto mais interessante desta fotografia, entretanto, não está vinculado às características, digamos, internas, deste ícone: não é portanto, naquilo que podemos supor de iconicamente modelado nesta imagem que reside a força com a qual ela se impõe, para nós (ou, ao menos, para nosso interesse mais específico, a saber, o de avaliar as implicações destas operações modelares em outros contextos discursivos); o que nos interesse apreciar, do ponto de vista da análise da fotografia, são os aspectos de vetorialização da imagem, e que funcionam, por sua vez, como indicadores de uma organização gráfica (ligada aos princípios que regerão sua inserção no espaço da página impressa, à qual a fotografia (e uma série de outros tipos de imagem) podem estar submetidas, sobretudo no contexto da comunicação mediática.










"Hooked on Speed", Life Magazine, 1963

Para analisarmos este ponto, precisamos considerar a fotografia, não apenas na sua constituição enquanto veículo de representação do que quer que seja, mas também como unidade de um discurso visual consideravelmente mais complexo: precisamos avaliar a função desta imagem nos contextos gráficos com os quais ela eventualmente negocia, procurando analisar os sentidos em que aqueles aspectos de sua modelação icônica podem aqui funcionar como índices de seu encaixe no universo gráfico da página. Alguns comentadores fazem apelo à dimensão “tabular” do espaço da página, de modo a atribuir uma função significante ao suporte impresso, função esta que passa a regenciar, inclusive, as apropriações da matéria icônica da fotografia, no contexto enunciativo propriamente dito das matérias jornalísticas.

No caso da foto de Lartigue, em particular, é precisamente esta qualidade de “feliz acidente” da imagem (característica de praticamente toda e qualquer obra-prima do fotojornalismo), com todos os aspectos de incorreção formal aí implicados (a concentração da composição em uma parte específica do plano visual, os problemas de processamento da imagem, a fixação do tema em condições de instabilidade) que confere a ela as qualidades de um ícone que sugere, por assim dizer, sua complementação por um discurso gráfico; a qualidade fisicamente impressa de instantaneidade confere ao ícone uma capacidade de coligar-se ao universo gráfico da imagem que possui paralelos, a meu ver, com a lógica do discurso visual dos quadrinhos, que funciona dentro dos mesmos princípios tabulares de constituição.

Em especial, notamos dois aspectos da imagem que favorecem seu agenciamento plástico, para além das funções puramente icônicas de modelação para a representação: de um lado, o fato de que a concentração da composição se acumula apenas em uma das partes da imagem (o fato de que sentimos um certo desequilíbrio da imagem, em uma das direções apenas do plano) favorece a que o discurso enunciativo explore precisamente o espaço vazio gerado por este modo da composição; em segundo lugar, a vetorialidade da própria imagem favorece a um tipo de efeito, na composição gráfica da página, que sugere o prolongamento da ação capturada, nos planos seguintes (o que se deixa entrever pelo fato de que a composição da página privilegia que a foto esteja no ponto final de nosso vetor habitual de letura, da esquerda para a direita).

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