sexta-feira, outubro 07, 2005

Luz e ambiência plástica do grotesco na publicidade
Angie Biondi (apresentado em 23/09/05)

Estabelecemos como parti pris da observação acerca do grotesco no campo publicitário a sua inscrição como tema de representações visuais num tom digamos, eufemista. A nossa compreensão sobre o que confere a uma imagem sua classificação estética do grotesco é, já, repertoriada por uma série de imagens e outras manifestações artísticas sedimentadas ao longo do tempo; tudo o que nos dirige a uma repulsa, uma abjeção, um espanto ou mesmo um riso satírico. Há toda uma tradição artística, sobretudo dos campos pictórico e literário, que nos conduziu a algum tipo de experiência com o mundo do grotesco. Dos mais conhecidos, Goya ou Brueghel, tanto quanto Edgar Allan Poe, dentre outros, nos possibilitam reconhecer algo muito próximo do grotesco, mas que na publicidade são delimitadas apenas suas nuances, contornos do grotesco que são sugeridos num tipo de regime discursivo muito próprio deste campo; o da retórica. Contudo, nesta visada rápida do tema procuramos nos deter brevemente sobre o modo como o grotesco nos é apresentado (e logicamente, representado) em peças publicitárias a partir da luminosidade empregada à imagem.
Tomamos como exemplo esta peça de campanha da marca Diesel Jeans.













A luz constrói o espaço disponível para aquilo que se reconhece como plano visível da imagem num conjugado entre luz e sombra. Esta combinação modela a forma dos objetos, evidencia contornos e confere certa profundidade à imagem de acordo com as diferentes concentrações no espaço visual, nas regiões que a luz incide. Podemos dizer que o modo como a luz destaca os objetos de cena também estabelece a relação com o espectador, provoca uma posição de interação com aquele que vê a imagem. A luz recorta, modela o plano, e posiciona o espectador para a imagem; é a luz que dispõe seu enquadramento. Trata-se de uma iluminação dirigida, orientada sobre pontos ou aspectos dos corpos cuja gradação marca um determinado aspecto e deixa evidente sua presença de modo incidente e não inerente.

Nesta imagem grotesca os objetos de cena são destacados por um tratamento da luz na peça, eles são sempre banhados pela luz sobre um fundo escuro. Aqueles que são destacados na imagem (nos quais a luz incide) superam o nível de claridade média que possuem os demais objetos. Apenas quando nos aproximamos um pouco mais da imagem começamos a notar outros componentes deste cenário, começamos a explorá-lo de acordo com o que a luz nos permite; braços e pernas esquartejados, uma fornalha, um brilho num plástico preto que sugere o contorno de um corpo envolto dependurado de ponta-cabeça, mas, sobretudo o enfoque na ação que é sugerida: um homem que serra uma parte de um corpo humano.

Todo o espaço é assim marcado por uma penumbra, a imagem é revestida por um aspecto sombrio e o destaque para a ação do personagem sugere, para o espectador, uma tensão representada pela iminência do próximo corte. A parca visibilidade nos dá ainda a impressão de um lugar sujo, cheio do que nos parece ser pedaços de corpos espalhados junto a outros objetos que cobrem o chão, alguns outros pendurados ou fixados pelas paredes do lugar representado. Em toda sua obscuridade, podemos apenas ter uma impressão sobre as coisas ali dispostas, pois esta imagem conta com nossa disposição para ver nela o que apenas nos parece ser “induzida” ou “sugerida” pela ambientação que a luz instaurou previamente, aquilo que Gombrich designou de “princípio do etc”.

Tão logo nos instalemos no local da representação, tão logo somos “acolhidos” pelo ambiente da imagem, os objetos que mal podemos distinguir passam a ser “certos” para nosso reconhecimento. Podemos inferir que são pedaços de corpos humanos ao invés de cogitarmos a possibilidade de ser bonecos, manequins de prova simplesmente, pois só “nos deixamos” sair do efeito de espanto quando percorremos outros elementos da peça, como os textos, a logomarca, enfim. Este jogo ambíguo é explorado como estratégia em muitas outras peças, a tensão que se instaura, para o espectador, fica no limiar entre o ambiente e os objetos (ou personagens), marca uma dualidade entre real e ficcional, entre um estado de lucidez ou consciência e um estado onírico ou fantasioso.

A luz não é dado exterior da imagem, mas é elemento compositivo e que tem uma finalidade específica: a de fixar o tema. O grotesco é representado através da ambiência promovida pelo tipo de luminosidade empregado às imagens, que, neste caso, se relaciona diretamente com o tema figurativizado e lhe confere um sentido. O grotesco observado aqui é muito mais da ordem de uma sensação, da instauração de certo clima sombrio, que produz um efeito de estranhamento ou de um absurdo, quase ‘sinistro’ à imagem, que a pura representação de certos objetos de cena. Podemos constatar, portanto, que a luz goza de certa autonomia na imagem e é através deste elemento que o sentido do grotesco se instaura.

Não devemos esquecer que grotesco vem do italiano grotta, que se remete à gruta, ao obscuro, ao abismal. Portanto, nossa perspectiva em relação à luminosidade segue esta mesma construção de sentido retomada aqui pela publicidade; um elemento plástico que trabalha a imagem para remeter a dimensão duma ambiência noturna, lúgubre, capaz de gerar um tipo específico de efeito ao espectador. Ademais, o que nos constituiu enquanto conhecimento (ainda que medíocre) sobre o grotesco é aqui manifestado pelo que poderíamos chamar de “metáfora da luz”, pois esta há muito é investida de um valor simbólico, a tensão entre luz e trevas sempre representou, em nossa sociedade ocidental cristã, o conflito entre bem e mal, o alto e o baixo; a publicidade apenas nos reenvia a este jogo de forças quando programa seu efeito.