Mais algumas pontuações sobre o argumento do dispositivo, especialmente a partir de leituras de Dubois e Schaeffer (e dos reparos críticos que procuro fazer às idéias de ambos): aqui, examino especialmente a noção de indexicalidade e os fundamentos teóricos desta categoria semiótica, que ambos restituem, de um modo ou de outro, aos marcos da teoria de Peirce; tento estabelecer até que ponto a identificação entre fotografia e indexicalidade, na perspectiva da semiótica peirceana, implicaria ou não a admissão da arché do dispositivo. Leiam e me digam depois.
Ad,
Benjamim
De índices e de dispositivos:
Em especial, se considerarmos a apropriação que Dubois faz das categorias semióticas de Peirce, veremos que estas foram consideravelmente abstraídas do contexto lógico-filosófico no qual faziam originalmente algum sentido. No que respeita a noção de indexicalidade, por exemplo, Dubois exacerba a relação possível desta categoria semiótica com o fenômeno fotográfico: em sua argumentação, a fotografia acaba por exceder a condição de mero exemplo circunstancial (no qual ela emergira originalmente nos escritos de Peirce), para assumir a forma de um caso quase exclusivo e cristalino do fenômeno da indexicalidade.
Um problema que se depreende da argumentação de Dubois e de Schaeffer sobre o caráter essencialmente indexical da fotografia concerne ao endereço teórico mesmo de uma tal concepção sobre a significação visual: ao que parece, como já o afirmamos, em níveis variados de apreensão, ambos ancoram o alcance desta categoria a uma extensão que não é aquela da ortodoxia semiótica (ao menos na letra originária dos escritos de Peirce). O que parece assim prevalecer, como contexto de formulação sobre o índice (de modo mais patente em Dubois, mais sutil em Schaeffer), é mais próprio a uma confrontação das doutrinas miméticas do realismo visual, do que por uma maior atenção ao modo de se trabalhar rigorosamente com as categorias semióticas, em sua origem mesma.
Neste quesito, é necessário realçar que o modus operandi de Peirce com estas categorias (em especial, a famosíssima segunda tricotomia dos “ícones/índices/símbolos”) não as supõem na condição de tipologias radicalmente excludentes das modalidades de significação: aliás, em nenhuma das categorias semióticas originais de Peirce, supõe-se algo como um fenômeno de “pureza ontológica” destes tipos semióticos. É sempre preciso recobrar que cada uma destas noções (infelizmente tratadas pela pedagogia semiótica como se formassem instâncias separadas) constituem, em verdade, matrizes ou variáveis combinatórias, para a gênese das classes de signos, conforme se considere os tipos de relação próprias à tríade mais fundamental da semiótica de Peirce (a concepção mesma do signo como união de um fundamento/objeto/interpretante).
Neste contexto, ícones e índices são manifestações das relações que se pode conceber entre um fundamento e seu objeto, conforme sejam interpretados, ora por sua contigüidade ou por sua semelhança/analogia: mais do que “tipos” de signos (que devem ser concebidos como mutuamente irredutíveis ou incompatíveis), estas categorias designam “dimensões” do sentido, que freqüentemente se encontram combinadas, na ordem dos fenômenos de significação.
Ademais, quando retoma uma breve passagem de um texto peirceano de 1894 (e não de 1895, como ele o refere), na qual supostamente o caráter do índice é infirmado para a fotografia instantânea, Dubois deixa escapar o importante fato de que este trecho evoca originalmente esta relação de compromisso existencial dos índices, sem excluir a possibilidade de pensar a fotografia (melhor dizendo, o signo visual que resulta de seu processo) precisamente como caso exemplar de um signo icônico! Mais gravemente, inclusive, no parágrafo em questão, Peirce discutia precisamente o conceito de semelhança, a propósito da fotografia instantânea, sendo que a questão da indexicalidade apenas emergira na condição de uma aspectualização da questão da conexão física entre o signo visual e sua gênese instantânea, no processo fotográfico (e não na forma visual que emerge ou resulta do mesmo).
“Fotografias, em particular as fotografias instantâneas, são muito instrutivas, pois sabemos que elas são, em certos aspectos, exatamente como os objetos que elas representam. Mas esta semelhança é devida ao fato de que as fotografias foram produzidas sob circunstâncias tais que as forçam a corresponder ponto a ponto à natureza. Neste aspecto, então, elas pertencem à segunda classe dos signos, por conexão física” (Peirce,1998: 5,6; 2.281).
No caso de Schaeffer, as faltas com respeito à ortodoxia são bem menos graves, pois sua argumentação se constrói sobretudo no expresso diálogo com alguns dos principais comentadores da tradição semiótica (em especial Umberto Eco). No que respeita as linhas gerais deste confronto, em particular, diríamos que elas refletem o estado ainda incipiente em que a discussão sobre estas categorias semióticas (índice e ícone) mantinha reciprocamente à parte dois domínios essencialmente coligados das manifestações visuais, a saber: a dimensão de manifestação iconográfica dos signos visuais (que evoca mais patentemente o papel das convenções culturais da representação e de suas variáveis estilísticas) e sua correlação com uma estrutura perceptiva de base (com fundamentos mais propriamente lógico-cognitivos e que evocariam, por exemplo, a riqueza de um esquematismo conceitual da experiência perceptiva ordinária).
Há que se notar ainda que estes aspectos apenas saltarão a um primeiro plano do debate nas teorias semióticas (ao menos no que respeita uma maior consideração sobre as variáveis estéticas e percepcionais da questão), quando o próprio Eco se dispuser finalmente a retomar o problema da iconicidade, tema de exaustivos debates de longos anos, na senda mais estrita das linhagens semióticas: em uma nova fase dos debates, a retomada destas questões é feita na correlação com certas implicações mais avançadas da noção de similaridade, tomando-a em jogo com certas vertentes de uma “ecologia da percepção”; no caso de Eco, estas variantes constituem o centro de sua argumentação, em vários dos capítulos de Kant e o Ornitorrinco (Eco, 1997).
Ainda assim, a avaliação que Schaeffer constrói sobre o conceito de índice, restitui-se à origem peirceana destas concepções, também numa clara infração do sentido original desta categoria (em especial, no que concerne àquela mesma avaliação de um necessário limite radical, com respeito aos ícones): considerando corretamente, em primeiro lugar, que a noção geral de signo, em Peirce, é vaga o suficiente para não nos apreender excessivamente nas cláusulas da arbitrariedade (mais próprias à vertente lingüística das teorias da significação, tradição na qual boa parte da reflexão francófona sobre os signos visuais lavrou suas idéias até ali), Schaeffer tenta avançar para a concepção peirceana no índice.
É neste ponto, entretanto (o da especificidade do conceito de índice), que lhe escapa a significação com a qual Peirce joga a necessária intercalação das categorias semióticas, sobre as quais falamos ainda há pouco, pois Schaeffer atribui à concepção peirceana do índice o fundamento de uma “semelhança específica” (não originária da percepção do signo, mas do contato com o objeto), quando a perspectiva peirceana, na verdade, atribui à conexão indexical apenas a qualidade da contigüidade factual (este é seu mais manifesto interpretante, a rigor). Para melhor vislumbrar esta questão, entretanto, precisamos ir além das considerações meramente exegéticas da ortodoxia semiótica de Peirce e tentar implicá-las, no contexto mesmo do exame sobre o fundamento da identificação entre dispositivo e arché fotográfica.
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