terça-feira, abril 21, 2009

Os desafios do retrato no fotojornalismo

Pensar os regimes do retrato no fotojornalismo

Benjamim Picado

A arte do retrato parece exibir, com maior franqueza do que em outras tópicas visuais do fotojornalismo, as intercalações da rendição instantânea do mundo visual na foto e a versão mais protocolar deste gênero de embargo visual, na arte pictórica. Falsa impressão de simplicidade, entretanto: pois, em primeiro lugar, é a própria noção do que venha a ser um retrato que impõe desafios a pensar sobre o assunto de que falamos, antes mesmo de considerarmos os dispositivos nos quais ele se manifesta (seja o fotográfico, seja o pictórico).

Assim sendo, suponhamos que o gênero do retrato se defina pela finalidade da representação da fisionomia humana, na qual a figura central se constitua para a imagem sob os parâmetros de sua recognoscibilidade possível: para assumir uma tal definição como operatória, precisaríamos primeiro estabelecer que o padrão deste reconhecimento não necessita ser da ordem da identificação do modelo em sua individualidade mais singular, mas eventualmente sob o marco de sua tipologia mais geral (sob critérios que vão da geografia à etnia e à época a que pertencem os retratados, inter alia).




Pierre Verger - "Água de Meninos" (1947)




Youssouf Karsh - "Rei Faiçal" (1945)

Deste modo, deveríamos nos interrogar sobre os regimes nos quais a figuração desta identidade própria ao afigurado são obtidas: seja na foto ou na pintura, o modelo tende a ser rendido ou representado em circunstâncias que o tornem reconhecível, não apenas em sua fisionomia, mas, de certo modo, em seu caráter definidor, fosse este de tipo psicológico, moral, social, geográfico ou histórico. Quando consideramos os primórdios da fotografia, identificamos usualmente na pose o protocolo de base da atitude do retratado, sendo também uma propriedade das primeiras experiências da figuração humana na fotografia, especialmente até o advento das técnicas do instantâneo fotográfico.

Ao contemplarmos, entretanto, alguns exemplares do retratismo fotográfico contemporâneo, vemos que estes aspectos da caracterização do afigurado na fotografia não se realizam do mesmo modo que na pintura e nas primeiras fases do registro fotográfico. Ponhamos as coisas deste modo: a finalidade de desenho de caráter permanece compondo uma espécie de ética do retrato, de tal sorte que representar alguém é atribuir-lhe uma certa distinção (que, de resto, já é marca de origem do retratado, em geral uma figura já-célebre), e que se reforça por procedimentos que, se não são de todo próprios à fotografia, decerto podem ser identificados muito intensamente com o aspecto de instantaneidade da imagem, que é própria ao dispositivo fotográfico. Entretanto, esta é uma questão que desenvolveremos com mais vagar apenas mais adiante.

Um outro aspecto importante deste desafio conceitual no que respeita a definição do retrato (na fotografia ou na pintura) diz respeito a uma certa assimilação da representação fisionômica, no plano do indivíduo que se deixa afigurar na imagem: ora, sob o título do retrato, reservamos espaço também à representação de grupos humanos, como é o caso dos “retratos de família”; mais uma vez, nestes termos, é a questão do reconhecimento fisionômico (seja nos marco da singularidade dos indivíduos ou dos critérios para que sejam tomados como partes de uma aldeia) que faz deste gênero de imagens algo que podemos separar momentaneamente daquelas que exprimem ações e paixões humanas ou ainda a perene estabilidade das paisagens. Mas aqui também, preferimos apenas anunciar o problema, prometendo dele tirar proveito mais adiante, em nossa discussão.

Do ponto de vista da eleição de um certo corpus para o exame do retrato fotográfico, há uma questão adicional interpondo-se aos modos como poderíamos assimilar nesta análise os protocolos da representação fisionômica na história da pintura: no caso das imagens do fotojornalismo, é deveras difícil que dissociemos a arte do retrato do contexto da rendição das ações nas quais se inscreve invariavelmente o recorte da fisionomia de um indivíduo, de tal modo que a questão deste gênero de reconhecimento no fotojornalismo é sempre um elemento auxiliar à representação das circunstâncias nas quais encontramos o modelo da imagem engajado, de modo mais ou menos frequente.

Em outros termos, o reconhecimento fisionômico (seja dele objeto um indivíduo ou um tipo) é algo que, no contexto do fotojornalismo, estará sempre assimilado às funções mais próprias do regime discursivo destas imagens: em seu interior, predomina a noção de que os objetos são rendidos no contexto da ação ou da paixão que se deixam gravar na face e no corpo (e que as imagens assimilam como segmento de uma narração temporalmente mais extensa que o instante materializado no ícone visual). Assim, a questão da fixação dos caracteres pelos quais alguém se deixa apreender numa imagem (e do modo como esta impregnação dos traços do caráter determina uma relativa individuação do motivo de uma representação) é fenômeno dos mais raros, ao menos na família das imagens fotojornalísticas.


Definir o crédito


Arko Data -"Sem título" (2004)

Se tentarmos nos restituir às origens desta operação de base de um retrato de circunstância (como matriz do modo como o fotojornalismo assimila a fisionomia ao contexto das ações), encontraremos aqueles gêneros de retrato que exibem seus modelos numa relação proporcional com algum aspecto definidor de seu caráter (um objeto, uma obra, uma rua, outra pessoa): nestes termos, a fotografia instaura um nível discursivo de atribuições da personalidade do afigurado, e que matriciam um dos regimes comunicacionais do retrato (muito freqüente, por exemplo, na representação da celebridade); diferentemente da pintura, entretanto, os traços que definem a realização deste efeito de caracterização não se encontram no afigurado, ele mesmo (em sua fisionomia, na tonicidade de seus movimentos, ou na sua expressividade corporal ou dos adereços que ele porta), mas no jogo, de algum modo mais próprio (ainda que não exclusivo) à fotografia, entre estes aspectos morfológicos da pessoa e os elementos do mundo material com o qual ela pode estar relacionada, enquanto personagem.


Arnold Newman - "Igor Stravisnky" (1944)

Este retrato de Stravinsky, por Arnold Newman retrata bem esta possibilidade, não absolutamente inerente ao meio fotográfico, mas que lhe parece bem mais apropriada do que as máscaras da representação humana, na pintura de tipos. Aqui, o próprio da figuração é formar o caráter do retratado, a partir de um jogo entre sua atitude corporal (sua pose, que nos recorda, muitas vezes, aqueles protocolos próprios à escultura, desde Rodin), e a caixa do piano (jogo plástico pelo qual se traduz, do mesmo modo, um aspecto de sua própria identificação enquanto músico).

A arte do retrato fotográfico exibe um tensionamento último das relações entre dois protocolos de produção, o fotográfico e o pictórico: tensão esta que se resolve num modo de expressão que é, ao mesmo tempo, documental e dramática, figurativa e narrativa, posto que exibe os traços de definição do representado, a partir da eternização de um segmento do que faz, ou de como se dispõe para o olhar do fotógrafo (e, em última para quem quer que o enxergue, através de seus retratos).

Mas ao realizar esta exibição de um caráter inscrito na própria ação do modelo, a fotografia vai se reunir, na forma mesma do retrato, com um aspecto da visão pictórica, que é o da representação das ações. E, sob este aspecto, dois exemplares do retrato fotográfico (em Robert Capa e Henri Cartier-Bresson), são exemplares de uma nova forma de realização da narrativa pictorial, posta no nível da reciprocidade entre o retratado e quem o vê.


Henri Cartier-Bresson - "Albert Camus" (1947)

Mais adiante, exploraremos precisamente esta questão da reciprocidade na imagem: por ora, entretanto, nos interessa a questão da exploração da temporalidade da fixação dos traços do modelo, como partes da assimilação do retrato a uma forma dramática (isto é, relativa as ações nas quais a fisionomia se deixa render). No caso da imagem de Albert Camus, a questão do retrato, diferentemente dos protocolos usuais da figuração retratista, implica na assimilação do modelo, num grau tal de instantaneidade da rendição da imagem que não permite a modelo controlar os traços de seu caráter que possam se deixar transmitir pela fisionomia.


Robert Capa - "Leon Trotsky at Copenhague" (1932)

Este aspecto fugaz e instável da fixação do caráter, na foto de Cartier-Bresson (especialmente reforçado pelo contraste entre a fixidez da fisionomia e a plasticidade instável do fundo) se exprime ainda mais intensamente na maneira como a expressão gestual de Leon Trotsky se incorpora ao retrato que Capa constrói de seu modelo: aqui, é a energia dos movimentos do revolucionário enquanto discursa para sua platéia que reforçam, no retrato, o caráter que encontraremos doravante associado à sua figura histórica.





2 comentários:

carles Comella disse...

Interesante blog.

André Betonnasi disse...

Benjamim e colegas.

Gostaria de propor algumas questões como um possível tópico de discussão sobre o ensaio que se encontra no nosso blog. Em particular as perguntas derivam desse trecho inicial:

“Assim sendo, suponhamos que o gênero do retrato se defina pela finalidade da representação da fisionomia humana, na qual a figura central se constitua para a imagem sob os parâmetros de sua recognoscibilidade possível: para assumir uma tal definição como operatória, precisaríamos primeiro estabelecer que o padrão deste reconhecimento não necessita ser da ordem da identificação do modelo em sua individualidade mais singular, mas eventualmente sob o marco de sua tipologia mais geral (sob critérios que vão da geografia à etnia e à época a que pertencem os retratados, inter alia).”

Primeiro: O retrato se detém apenas a fisionomia humana? Não poderia no que é retrato, por exemplo, incluir também objetos e animais? Pois penso que alguns critérios estão no decoro do que pode ser chamado de “retrato” independente do tipo retratado. Um dos critérios (apontado no próprio texto) – é a instantaneidade – e o tipo de enquadramento (pensado agora por mim). Esse último quando não se dá de modo mais fechado a “face do objeto” (humano ou não) se aproxima, ao menos, ao enquadramento mais intimista.

Outra: o que podemos entender como “fisionomia humana”? Essa definição é a partir de um senso comum? Digo isso já o texto (ou ao menos os exemplos do texto) tenta mostrar que o retrato se dá pela “expressividade (física/corporal) humana” ou por caracteres das personalidades dos retratados. A propósito existe alguma definição mais instituída sobre retrato no meio acadêmico? Ou o ponto é justamente este: construir uma definição mais sólida a partir de um contraponto de senso comum...

Lembro a minhas questões são de ordem superficial, pois penso que não altera o modo de analisar as imagens, porém fico a imaginar se não há como eleger outro corpus que se diferencie da representação humana para futuras análises no nosso grupo. Enfim, seria um absurdo falar que há um “retrato” do sol ou de objetos de decoração?

Até mais tarde. Abraços a todos.