terça-feira, agosto 03, 2010

Mais notas sobre o dispositivo: identificando as vozes (Dubois e Schaeffer)


Queridos,

Mais algumas linhas sobre a questão do dispositivo, de artigo que estou em vias de arrematar. Agora, falo um pouco dos argumentos de Dubois e Schaeffer, e da importância para ambos, da noção do índice, para definir a natureza da fotografia.

Divirtam-se,

Benjamim

Esta tese mais forte sobre uma essencial característica de indexicalidade, definida como traço constitutivo da significação fotográfica, pois bem, é bastante certo que ninguém a formulou primeiramente com mais franqueza e candura do que Phillipe Dubois, nesta obra originalmente editada na Bélgica, em 1983 e depois, numa versão francesa, acrescida de quatro ensaios suplementares, em 1990, e que é sempre referida por tantos de nós como demarcadora de algumas das grandes viragens conceituais na reflexão sobre a fotografia, O Ato Fotográfico (Dubois, 2001): já mencionamos, ao menos em seus resultados mais conhecidos, todo o percurso pelo qual este pensador escalonou e valorizou as etapas históricas nas quais a reflexão sobre a fotografia experimentou um certo tipo de paixão (tanto positiva como negativa), com especial respeito às modalidades do realismo que pareceriam propriamente adventícias da fotografia. 

Outra referência fundamental, neste contexto, é a obra de Jean-Marie Schaeffer, A Imagem Precária (Schaeffer, 1996): nascida num contexto similar ao das idéias de Dubois (foi publicada originalmente em 1987), sua linha de argumentação avança mais densamente nas implicações filosóficas da identificação da fotografia com o status semiótico da indexicalidade, introduzindo por isto mesmo variantes da discussão que eram tradicionalmente desconsideradas nesta linhagem de textos sobre uma suposta natureza fotográfica; em primeiro lugar, ele dissocia a questão da ontologia do fotográfico das problematizações sobre o status da imagem fotográfica, o que, ao menos em princípio, facilita consideravelmente a compreensão sobre o modo de abordar a especificidade indexical da fotografia (já que esta, sendo da ordem de uma arché, invoca necessariamente a consideração do lugar mais próprio dos dispositivos fotográficos).

Em ambos os casos, o problema central não é apenas a identificação da fotografia com os índices (não se tenta pensar o essencial da fotografia exclusivamente a partir de seus produtos ou de suas imagens), mas também com o caráter originário do dispositivo fotográfico, como fundamento mesmo deste compromisso existencial de suas formas visuais: nos interessa examinar estas questões, em primeiro lugar avaliando até que ponto a categoria dos signos indexicais precisaria ter sido tratada (ao menos no caso da fotografia) na estrita dependência da caracterização de dispositivos de gênese de formas visuais.

Pois, em nosso modo de entender, a impressão que predomina sobre o argumento do dispositivo (e a evocação que faz de certas categorias semióticas) é a de que a noção mesma de índice não emerge nestes (tampouco em outros textos da mesma orientação) em estrita correlação com a ortodoxia semiótica do conceito: nas considerações sobre a indexicalidade fotográfica, pouca consideração há sobre a história desta idéia, no contexto das teorias lógicas, assim como em suas implicações práticas; elas não são, portanto, correlativas a um exame sobre a natureza mesma dos índices, tomadas como categorias do pensamento ou até mesmo como modelo epistemológico de conjecturas (um “paradigma indiciário”), característica não apenas da lógica da ciência, mas das práticas clínicas e detetivescas, por exemplo (Guinzburg, 1989).

Ao invés disto, predomina uma espécie de viés negativo de sua argumentação, a partir de uma certa lógica excludente da caracterização sobre certos segmentos das tipologias da significação (em especial, aquela que define no universo visual o que é próprio, ora aos índices, ora aos ícones): no fundo do problema da indexicalidade, neste seu registro de traço definidor do caráter mais próprio da fotografia, instala-se portanto a necessidade de firmar a dobra diferencial entre setores específicos da família das formas visuais, necessariamente tomadas como mutuamente exclusivas (caso mais típico, os limites comumente interpostos entre imagens pictóricas e técnicas).

Sintoma desta inclinação teórica para a necessária alternância entre tipologias semióticas é o próprio percurso histórico no interior do qual Dubois constrói (no primeiro capítulo de O Ato Fotográfico) as sucessivas concepções do realismo manifestamente próprio às formas visuais da fotografia: nascendo sob o signo de uma concepção primeiramente “mimética” da imagem (e que ainda se nutre das proximidades de família entre as figuras visuais da fotografia e da pintura), ele alcança sua suposta maturidade ao conceber finalmente o que é próprio da significação fotográfica, instalando-a na ordem do “traço” indexical (Dubois, 2001: 23,56). Portanto, não apenas a mímese e a indexicalidade se constituem em necessária e mútua oposição, como também (de um ponto de vista que agora é axiológico, alem de pretensamente teórico), a categoria do índice exprime um grau mais avançado da reflexão sobre aquilo que é constitutivo da significação visual na fotografia.

Nestes termos, temos aqui ao menos dois aspectos a tomar em consideração, antes de avançarmos na avaliação destas teses: primeiramente, em que sentido propriamente semiótico (ao menos na ortodoxia peirceana, que parece fornecer a matriz através da qual os textos de Dubois e Schaeffer trabalham mais fortemente), se pode admitir esta suposta altercação entre a semelhança icônica (aqui assimilada, talvez indevidamente, à mimese visual) e a implicação existencial ou causal, própria aos ícones? Em segundo lugar, ponto mais afeito ao fenômeno fotográfico mesmo, como pensar este compromisso indexical (supostamente exclusivo da fotografia), quando as formas visuais que a constituem reclamam também critérios de similitude perceptual (mais próprios portanto ao ícone)? Trataremos de cada uma destas questões em separado, começando de imediato pela primeira delas, a saber, até que ponto índices e ícones devem ser tomados em separado (no que concerne uma interrogação sobre o caráter semiósico das formas visuais).

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