terça-feira, agosto 17, 2010

Notas Finais sobre o Dispositivo

Queridos,


Aí vão as últimas longas linhas sobre o dispositivo. Pela reação da multidão, ou acertei muito no ponto ou então tá todo mundo dormindo. De toute façon...


Dispositivo e Indexicalidade, ainda.



Neste ponto, é talvez necessário que nos valhamos da perspectiva em que Schaeffer apresenta o problema, para que o ponto sobre a necessária  indexicalidade fotográfica se torne um pouco mais claro. Em primeiro lugar, no caso de A Imagem Precária, este argumento se manifesta na base de uma requisição que é antes pragmática (ou fenomenológica) do que histórica: não se trata, portanto, de estipular uma evolução do pensamento sobre a fotografia (para a qual os últimos pontos da cronologia representam o estágio mais avançado da discussão), mas antes pensar em que medida (ou sob que condições) o discurso sobre a indexicalidade pode fazer entrada, sem que o confundamos com outros aspectos mais comuns de nossa experiência ordinária com as formas visuais; assim sendo, pede-nos Schaeffer, é fundamental que, ao refletirmos sobre a fotografia, nos desviemos de considerações sobre a imagem fotográfica, para nos concentrarmos em seu dispositivo (pois, de certo modo, a atenção aos produtos da técnica fotográfica teria confundido-nos sobre o caráter da arché da fotografia, que seria da ordem do índice).

“Para evitar qualquer mal-entendido: a importância que dou à análise da materialidade do dispositivo fotográfico não provém de uma visão reducionista, mas é motivada unicamente pelo fato de que o estatuto pragmático da imagem baseia-se em uma tematização desta materialidade como fundamento de sua especificidade. É ela, por exemplo, que fornece o critério de discriminação que nos permite distinguir a imagem fotográfica da imagem pictórica” (Schaeffer, 1996: 14).

Dubois também identifica (de princípio, ao menos) a indexicalidade fotográfica com o processo automático da gênese de suas figuras visuais (como já o vimos mais acima), o que torna patente a fonte deste tipo de fala sobre a significação visual, manifesta na admissão de que os regimes da imagem são fundamentalmente uma questão de dispositivo. Em Schaeffer, o exame do dispositivo fotográfico nos conduzirá a tomar a experiência das formas visuais dele decorrentes como identificadas com os aparatos que orientam o percurso de um “fluxo fotônico”, incidindo sobre uma matéria sensível e projetada para a visão: o fundamento destas imagens decorrerá do modo como o dispositivo pôde manifestá-las, seja por “reflexo” da luz sobre os objetos, e sua “projeção” em superfícies de visualização (no caso dos formatos impressos das imagens canônicas do fotojornalismo e da fotografia artística) ou por “luminância direta” e “travessia” dos corpos visíveis (caso das fotos solares e das imagens médicas de ressonância ou de raio-X).

Há que se pensar que, ao evocarem para a fotografia esta relação de implicação existencial (sob a insígnia semiótica do índice), Dubois e Schaeffer deveriam considerar até que ponto uma questão de experiência de significação pôde colocar em jogo, de modo tão central e exclusivo, o status determinante de um dispositivo de visualização.

Se a arché fotográfica requisita o lugar do dispositivo, se “a impressão – portanto, a imagem fotônica – constitui o arché da imagem  fotográfica, na medida em que esta se define como registro de traços visíveis” (Schaeffer, 1996: 26), pergunta-se se esta é uma questão relativa à dimensão semiósica (ou mesmo estética) da experiência da fotografia: pois, na introdução de seu livro, é o próprio Schaeffer quem reclama para a significação da fotografia a relação de suas imagens com a recepção (poderíamos especificar, com a dimensão hermenêutica da percepção visual). Pois bem, é difícil imaginar como é que a compreensão da fotografia (falamos aqui de suas manifestações mais canônicas, ao menos) poderia pôr em cena a noção de indexicalidade, na absoluta dependência do caráter constitutivo de seus dispositivos técnicos.

Que a semelhança visual (de fundamento icônico) seja, por sua vez, um dado que se possa prescindir logicamente desta relação dos índices fotográficos (o que caracteriza decerto uma possível arché da fotografia) resulta apenas do aspecto pelo qual tematizamos a compreensão da imagem, em contextos específicos (e nos quais necessariamente a percepção pode jogar um papel fundamental, mas sempre restrito a um tipo de adestramento, próprio à interpretação científica ou clínica dos dados visuais, por exemplo): tal nível de conexão existencial é  bem exemplificada pelos casos das figuras visuais obtidas por luminância direta ou por transparência; o mesmo não ocorre, quando examinamos as figuras visuais oriundas dos processos de luminância “por reflexo”, pois estas se assemelham aos padrões de visualização das imagens canônicas.

No primeiro caso, podemos até dizer que são casos de uma estrita indexicalidade visual (como no exemplo das manchas de sol na superfície da pele), já que dispensam, ao menos em tese, qualquer recurso a uma idéia canônica de figuratividade visual (ou a uma estrutura da percepção não-especializada e fortemente culturalizada, funcionalmente cifrada como um perceptum visual).

Ainda assim, entretanto, tomadas no rigor da nomenclatura semiótica, estas ocorrências não caracterizam simplesmente “índices”, mas uma classe inteira de signos que é definida como “sinsignos indexicais remáticos”: do ponto de vista de seu fundamento (da referencia a uma qualidade, identificada como veículo de significações), elas constituem uma forma reconhecível (a mancha), que é tomada por sua vez na condição de ser causada por um outro objeto (a luminância direta, da qual a mancha é, agora sim, um índice), finalmente instituindo uma relação possível entre os dois fatos (ele é o termo de uma proposição possível, pela qual a mancha e a luz se implicam na interpretação, como efeito e causa).

Mais importante, segundo Peirce, estes tipos de signos, embora “causados” por seus objetos, não se manifestam sem a concorrência de um “sinsigno icônico” (um signo de fundamento figurativo, pautado por uma relação de semelhança), que se difere dos tipos tradicionais de ícones, por instaurarem uma espécie de semelhança oriunda de algum efeito do objeto dinâmico: exemplo mais patente é o da “figuratividade” pela qual compreendemos as pegadas numa superfície de terra, pela qual inferimos aspectos símiles (icônicos, portanto), que nos entregam inferencialmente algum aspecto ou de caráter do impregnante.

Por seu turno, nos exemplos de signos indexicais que Dubois arrola (numa passagem que já citamos alhures), é igualmente patente que a delimitação do aspecto de conexão física, própria aos índices, pode ser separada de seus efeitos de significação, mas somente mediante arbítrio de análise (e não como suposição de uma efetiva autonomia dos tipos indexicais). Tomemos em causa, a titulo do exame sobre a fotografia, a questão da necessária oposição categorial entre ícone/índice: se considerarmos o caso da impressão fotográfica como correlativo ao fenômeno das sombras (que indicam uma presença) e das cicatrizes (que significam fisicamente uma injúria imposta a um corpo), teremos que admitir que a indexicalidade só diz respeito à porção de questio facti que se interpõe entre a manifestação do signo e sua filogênese (concerne ao fato da natureza, pela qual se define o processo da impregnação luminosa sobre superfícies e dispositivos).

Se considerarmos entretanto estes mesmos fenômenos, agora na perspectiva dos gêneros de percepção pelos qual atribuímos sua realidade como um fato de significação, é evidente que sem a suposição de uma fundamental analogia entre operações e resultados (o tipo de instrumento e a forma da marca, no caso da cicatriz) e de uma semelhança de contornos e de morfologia (os limites sombreados e os contornos do objeto percebido, no caso da sombra), assunção alguma sobre a factual causalidade entre estes signos e sua origem faria sentido, ao menos numa perspectiva lógica da justificação de nossa compreensão visual.

A lição que resta disto tudo diz respeito ao caráter com o qual devemos tratar as categorias semióticas originárias de Peirce, especialmente no modo de abordar os regimes da significação no qual encontramos empenhado o fenômeno comunicacional da fotografia: a simultaneidade de aspectos indexicais ou icônicos nas formas visuais (não obstante seus dispositivos de origem) não apenas é concebível (e o mesmo valeria até para as representações pictóricas, que teriam seu correspondente quinhão de indexicalidade), como também é a única maneira de acessar o fenômeno de significação visual que lhe é próprio, no aspecto através do qual ele se destaca para a análise, ou seja, a partir da “requisição de sua apropriada fenomenologia” (Lopes, 1998).

A seguirmos corretamente os preceitos lógicos das classificações semióticas de Peirce, teríamos que reconhecer que a indexicalidade é constitutiva da origem factual de certos tipos de signos (de sua manifestação conforme uma filogênese), mas insuficiente, por si mesma, para estabelecer um sentido logicamente válido, do ponto de vista de sua compreensão na recepção: supor o contrário seria incorrer naquela conhecida implicação falaciosa de um post hoc, ergo propter hoc, ou seja, tomar a sucessividade causal do processo fotográfico como elemento de justificação sobre o modo como efetivamente atribuímos seu sentido referencial.

Sem o devido concurso da iconicidade (própria aos regimes de configuração sensorial e perceptiva), nenhuma questão de fato se pode interpor, mesmo para os signos genuinamente indexicais. E isto vale igualmente para a compreensão da fotografia, enquanto suposto caso de indexicalidade: em especial, Dubois deveria ter concedido à sua consideração sobre o caráter existencialmente comprometido da fotografia o ponto de que este aspecto de sua significação (tão próprio aos regimes nos quais ela funciona a título de critérios de verdade e de factualidade, como é o caso do fotojornalismo) não é pragmaticamente independente das condições nas quais ele previamente opera como signo icônico (ao menos, na perspectiva de sua recepção canônica).

Ainda na letra de Peirce, por exemplo, as fotografias canônicas são casos exemplares dos “sinsignos dicentes”, ou seja: de uma classe de signos que manifesta-se em seu fundamento (mais uma vez, na referencia à qualidade que lhe serve de motriz signíco), a partir de uma forma visual reconhecível (as figuras dos objetos como rendidas no dispositivo) e instituem um princípio de compreensão associado à ordem das proposições sobre fatos (os entes fotografados são significados pela sua manifesta presença ou pelo caráter significativo do instante de sua rendição). Entretanto, os requisitos desta conexão causal compreendida não são, mais uma vez, exclusivamente indexicais, pois a manifestação dos objetos é conforme um tipo de configuração das qualidades visuais com respeito a uma estrutura da percepção (portanto, manifesta como “sinsigno icônico”).

“Um sinsigno dicente (...) é todo objeto da experiência direta na medida em que é um signo, e como tal, propicia informação a respeito de seu objeto, isto ele só pode fazer por ser realmente afetado por seu objeto, de tal forma que é necessariamente um índice (...). Um signo dessa espécie deve envolver um sinsigno icônico para corporificar a informação e um sisnsigno indicial remático para indicar o objeto ao qual se refere a informação. Mas o modo de combinação, ou a sintaxe, destes dois também deve ser significante.” (Peirce, 1990: 55; 2.257).

Deste modo, ao supor que a categoria do índice seja necessariamente apropriada à explanação dos modos de significação que encontramos associados à fotografia, devemos implicar nesta admissão (ao menos naquilo que pretendemos firmar para a natureza da fotografia) uma relativa independência da significação fotográfica com respeito à natureza de seus dispositivos técnicos. Formulemos melhor este ponto: pensar a questão da arché fotográfica pode decerto reclamar a categoria semiótica do índice como um de seus aspectos mais salientes, mas isto não pode ser confundido em absoluto com a suposição de um caráter determinante do dispositivo fotográfico (e isto vale tanto para o par implicado fotografia/indexicalidade, quanto para seu suposto antípoda pintura/iconicidade).

Se nos reportarmos ao caráter indexical da fotografia, encontraremos a idéia de sua origem muito mais identificada com os fundamentos pragmáticos de um regime experiencial de compreensão das formas visuais (e por conseqüência, com os sistemas de crenças que implicamos no modo de fixar esse aspecto de compromisso ontológico da imagem), do que pela suposição de que esta somente é evocada pelos produtos de um determinado aparato mediático.

segunda-feira, agosto 09, 2010

Notas sobre o dispositivo, o status semiótico da indexicalidade fotográfica

Queridos,

Mais algumas pontuações sobre o argumento do dispositivo, especialmente a partir de leituras de Dubois  e Schaeffer (e dos reparos críticos que procuro fazer às idéias de ambos): aqui, examino especialmente a noção de indexicalidade e os fundamentos teóricos desta categoria semiótica, que ambos restituem, de um modo ou de outro, aos marcos da teoria de Peirce; tento estabelecer até que ponto a identificação entre fotografia e indexicalidade, na perspectiva da semiótica peirceana, implicaria ou não a admissão da arché do dispositivo. Leiam e me digam depois.

Ad,

Benjamim

De índices e de dispositivos:


Em especial, se considerarmos a apropriação que Dubois faz das categorias semióticas de Peirce, veremos que estas foram consideravelmente abstraídas do contexto lógico-filosófico no qual faziam originalmente algum sentido. No que respeita a noção de indexicalidade, por exemplo, Dubois exacerba a relação possível desta categoria semiótica com o fenômeno fotográfico: em sua argumentação, a fotografia acaba por exceder a condição de mero exemplo circunstancial (no qual ela emergira originalmente nos escritos de Peirce), para assumir a forma de um caso quase exclusivo e cristalino do fenômeno da indexicalidade.

Um problema que se depreende da argumentação de Dubois e de Schaeffer sobre o caráter essencialmente indexical da fotografia concerne ao endereço teórico mesmo de uma tal concepção sobre a significação visual: ao que parece, como já o afirmamos, em níveis variados de apreensão, ambos ancoram o alcance desta categoria a uma extensão que não é aquela da ortodoxia semiótica (ao menos na letra originária dos escritos de Peirce). O que parece assim prevalecer, como contexto de formulação sobre o índice (de modo mais patente em Dubois, mais sutil em Schaeffer), é mais próprio a uma confrontação das doutrinas miméticas do realismo visual, do que por uma maior atenção ao modo de se trabalhar rigorosamente com as categorias semióticas, em sua origem mesma.

Neste quesito, é necessário realçar que o modus operandi de Peirce com estas categorias (em especial, a famosíssima segunda tricotomia dos “ícones/índices/símbolos”) não as supõem na condição de tipologias radicalmente excludentes das modalidades de significação: aliás, em nenhuma das categorias semióticas originais de Peirce, supõe-se algo como um fenômeno de “pureza ontológica” destes tipos semióticos. É  sempre preciso recobrar que cada uma destas noções (infelizmente tratadas pela pedagogia semiótica como se formassem instâncias separadas) constituem, em verdade, matrizes ou variáveis combinatórias, para a gênese das classes de signos, conforme se considere os tipos de relação próprias à tríade mais fundamental da semiótica de Peirce (a concepção mesma do signo como união de um fundamento/objeto/interpretante).

Neste contexto, ícones e índices são manifestações das relações que se pode conceber entre um fundamento e seu objeto, conforme sejam interpretados, ora por sua contigüidade ou por sua semelhança/analogia: mais do que “tipos” de signos (que devem ser concebidos como mutuamente irredutíveis ou incompatíveis), estas categorias designam “dimensões” do sentido, que freqüentemente se encontram combinadas, na ordem dos fenômenos de significação.

Ademais, quando retoma uma breve passagem de um texto peirceano de 1894 (e não de 1895, como ele o refere), na qual supostamente o caráter do índice é infirmado para a fotografia instantânea, Dubois deixa escapar o importante fato de que este trecho evoca originalmente esta relação de compromisso existencial dos índices, sem excluir a possibilidade de pensar a fotografia (melhor dizendo, o signo visual que resulta de seu processo) precisamente como caso exemplar de um signo icônico! Mais gravemente, inclusive, no parágrafo em questão, Peirce discutia precisamente o conceito de semelhança, a propósito da fotografia instantânea, sendo que a questão da indexicalidade apenas emergira na condição de uma aspectualização da questão da conexão física entre o signo visual e sua gênese instantânea, no processo fotográfico (e não na forma visual que emerge ou resulta do mesmo).

“Fotografias, em particular as fotografias instantâneas, são muito instrutivas, pois sabemos que elas são, em certos aspectos, exatamente como os objetos que elas representam. Mas esta semelhança é devida ao fato de que as fotografias foram produzidas sob circunstâncias tais que as forçam a corresponder ponto a ponto à natureza. Neste aspecto, então, elas pertencem à segunda classe dos signos, por conexão física” (Peirce,1998: 5,6; 2.281).

No caso de Schaeffer, as faltas com respeito à ortodoxia são bem menos graves, pois sua argumentação se constrói sobretudo no expresso diálogo com alguns dos principais comentadores da tradição semiótica (em especial Umberto Eco). No que respeita as linhas gerais deste confronto, em particular, diríamos que elas refletem o estado ainda incipiente em que a discussão sobre estas categorias semióticas (índice e ícone) mantinha reciprocamente à parte dois domínios essencialmente coligados das manifestações visuais, a saber: a dimensão de manifestação iconográfica dos signos visuais (que evoca mais patentemente o papel das convenções culturais da representação e de suas variáveis estilísticas) e sua correlação com uma estrutura perceptiva de base (com fundamentos mais propriamente lógico-cognitivos e que evocariam, por exemplo, a riqueza de um esquematismo conceitual da experiência perceptiva ordinária).

Há que se notar ainda que estes aspectos apenas saltarão a um primeiro plano do debate nas teorias semióticas (ao menos no que respeita uma maior consideração sobre as variáveis estéticas e percepcionais da questão), quando o próprio Eco se dispuser finalmente a retomar o problema da iconicidade, tema de exaustivos debates de longos anos, na senda mais estrita das linhagens semióticas: em uma nova fase dos debates, a retomada destas questões é feita na correlação com certas implicações mais avançadas da noção de similaridade, tomando-a em jogo com certas vertentes de uma “ecologia da percepção”; no caso de Eco, estas variantes constituem o centro de sua argumentação, em vários dos capítulos de Kant e o Ornitorrinco (Eco, 1997).

Ainda assim, a avaliação que Schaeffer constrói sobre o conceito de índice, restitui-se à origem peirceana destas concepções, também numa clara infração do sentido original desta categoria (em especial, no que concerne àquela mesma avaliação de um necessário limite radical, com respeito aos ícones): considerando corretamente, em primeiro lugar, que a noção geral de signo, em Peirce, é vaga o suficiente para não nos apreender excessivamente nas cláusulas da arbitrariedade (mais próprias à vertente lingüística das teorias da significação, tradição na qual boa parte da reflexão francófona sobre os signos visuais lavrou suas idéias até ali), Schaeffer tenta avançar para a concepção peirceana no índice.

É neste ponto, entretanto (o da especificidade do conceito de índice), que lhe escapa a significação com a qual Peirce joga a necessária intercalação das categorias semióticas, sobre as quais falamos ainda há pouco, pois Schaeffer atribui à concepção peirceana do índice o fundamento de uma “semelhança específica” (não originária da percepção do signo, mas do contato com o objeto), quando a perspectiva peirceana, na verdade, atribui à conexão indexical apenas a qualidade da contigüidade factual (este é seu mais manifesto interpretante, a rigor). Para melhor vislumbrar esta questão, entretanto, precisamos ir além das considerações meramente exegéticas da ortodoxia semiótica de Peirce e tentar implicá-las, no contexto mesmo do exame sobre o fundamento da identificação entre dispositivo e arché fotográfica.

Em suma, precisamos examinar as idéias de Dubois e Schaeffer, na ordem de uma segunda questão que impomos a seus textos: no primeiro momento, questionamos que as categorias de Peirce fossem tomadas num sentido de mútuas exclusividade e irredutibilidade. Pois agora nos perguntamos: como pensar esta suposta separação entre semelhança e contigüidade factual na fotografia, quando nela se evidencia um aspecto de   “estruturação perceptiva”, evocação pela similaridade das formas visuais de seus produtos com uma ordem da percepção ordinária?

terça-feira, agosto 03, 2010

Notas sobre o dispositivo, o índice e a "arché" fotográfica

Queridos,

Mais algumas linhas sobre a questão do dispositivo, de artigo que estou em vias de arrematar. Agora, falo um pouco dos argumentos de Dubois e Schaeffer, e da importância para ambos, da noção do índice, para definir a natureza da fotografia.

Divirtam-se,

Benjamim

Esta tese mais forte sobre uma essencial característica de indexicalidade, definida como traço constitutivo da significação fotográfica, pois bem, é bastante certo que ninguém a formulou primeiramente com mais franqueza e candura do que Phillipe Dubois, nesta obra originalmente editada na Bélgica, em 1983 e depois, numa versão francesa, acrescida de quatro ensaios suplementares, em 1990, e que é sempre referida por tantos de nós como demarcadora de algumas das grandes viragens conceituais na reflexão sobre a fotografia, O Ato Fotográfico (Dubois, 2001): já mencionamos, ao menos em seus resultados mais conhecidos, todo o percurso pelo qual este pensador escalonou e valorizou as etapas históricas nas quais a reflexão sobre a fotografia experimentou um certo tipo de paixão (tanto positiva como negativa), com especial respeito às modalidades do realismo que pareceriam propriamente adventícias da fotografia. 

Outra referência fundamental, neste contexto, é a obra de Jean-Marie Schaeffer, A Imagem Precária (Schaeffer, 1996): nascida num contexto similar ao das idéias de Dubois (foi publicada originalmente em 1987), sua linha de argumentação avança mais densamente nas implicações filosóficas da identificação da fotografia com o status semiótico da indexicalidade, introduzindo por isto mesmo variantes da discussão que eram tradicionalmente desconsideradas nesta linhagem de textos sobre uma suposta natureza fotográfica; em primeiro lugar, ele dissocia a questão da ontologia do fotográfico das problematizações sobre o status da imagem fotográfica, o que, ao menos em princípio, facilita consideravelmente a compreensão sobre o modo de abordar a especificidade indexical da fotografia (já que esta, sendo da ordem de uma arché, invoca necessariamente a consideração do lugar mais próprio dos dispositivos fotográficos).

Em ambos os casos, o problema central não é apenas a identificação da fotografia com os índices (não se tenta pensar o essencial da fotografia exclusivamente a partir de seus produtos ou de suas imagens), mas também com o caráter originário do dispositivo fotográfico, como fundamento mesmo deste compromisso existencial de suas formas visuais: nos interessa examinar estas questões, em primeiro lugar avaliando até que ponto a categoria dos signos indexicais precisaria ter sido tratada (ao menos no caso da fotografia) na estrita dependência da caracterização de dispositivos de gênese de formas visuais.

Pois, em nosso modo de entender, a impressão que predomina sobre o argumento do dispositivo (e a evocação que faz de certas categorias semióticas) é a de que a noção mesma de índice não emerge nestes (tampouco em outros textos da mesma orientação) em estrita correlação com a ortodoxia semiótica do conceito: nas considerações sobre a indexicalidade fotográfica, pouca consideração há sobre a história desta idéia, no contexto das teorias lógicas, assim como em suas implicações práticas; elas não são, portanto, correlativas a um exame sobre a natureza mesma dos índices, tomadas como categorias do pensamento ou até mesmo como modelo epistemológico de conjecturas (um “paradigma indiciário”), característica não apenas da lógica da ciência, mas das práticas clínicas e detetivescas, por exemplo (Guinzburg, 1989).

Ao invés disto, predomina uma espécie de viés negativo de sua argumentação, a partir de uma certa lógica excludente da caracterização sobre certos segmentos das tipologias da significação (em especial, aquela que define no universo visual o que é próprio, ora aos índices, ora aos ícones): no fundo do problema da indexicalidade, neste seu registro de traço definidor do caráter mais próprio da fotografia, instala-se portanto a necessidade de firmar a dobra diferencial entre setores específicos da família das formas visuais, necessariamente tomadas como mutuamente exclusivas (caso mais típico, os limites comumente interpostos entre imagens pictóricas e técnicas).

Sintoma desta inclinação teórica para a necessária alternância entre tipologias semióticas é o próprio percurso histórico no interior do qual Dubois constrói (no primeiro capítulo de O Ato Fotográfico) as sucessivas concepções do realismo manifestamente próprio às formas visuais da fotografia: nascendo sob o signo de uma concepção primeiramente “mimética” da imagem (e que ainda se nutre das proximidades de família entre as figuras visuais da fotografia e da pintura), ele alcança sua suposta maturidade ao conceber finalmente o que é próprio da significação fotográfica, instalando-a na ordem do “traço” indexical (Dubois, 2001: 23,56). Portanto, não apenas a mímese e a indexicalidade se constituem em necessária e mútua oposição, como também (de um ponto de vista que agora é axiológico, alem de pretensamente teórico), a categoria do índice exprime um grau mais avançado da reflexão sobre aquilo que é constitutivo da significação visual na fotografia.

Nestes termos, temos aqui ao menos dois aspectos a tomar em consideração, antes de avançarmos na avaliação destas teses: primeiramente, em que sentido propriamente semiótico (ao menos na ortodoxia peirceana, que parece fornecer a matriz através da qual os textos de Dubois e Schaeffer trabalham mais fortemente), se pode admitir esta suposta altercação entre a semelhança icônica (aqui assimilada, talvez indevidamente, à mimese visual) e a implicação existencial ou causal, própria aos ícones? Em segundo lugar, ponto mais afeito ao fenômeno fotográfico mesmo, como pensar este compromisso indexical (supostamente exclusivo da fotografia), quando as formas visuais que a constituem reclamam também critérios de similitude perceptual (mais próprios portanto ao ícone)? Trataremos de cada uma destas questões em separado, começando de imediato pela primeira delas, a saber, até que ponto índices e ícones devem ser tomados em separado (no que concerne uma interrogação sobre o caráter semiósico das formas visuais).

Mais notas sobre o dispositivo: identificando as vozes (Dubois e Schaeffer)


Queridos,

Mais algumas linhas sobre a questão do dispositivo, de artigo que estou em vias de arrematar. Agora, falo um pouco dos argumentos de Dubois e Schaeffer, e da importância para ambos, da noção do índice, para definir a natureza da fotografia.

Divirtam-se,

Benjamim

Esta tese mais forte sobre uma essencial característica de indexicalidade, definida como traço constitutivo da significação fotográfica, pois bem, é bastante certo que ninguém a formulou primeiramente com mais franqueza e candura do que Phillipe Dubois, nesta obra originalmente editada na Bélgica, em 1983 e depois, numa versão francesa, acrescida de quatro ensaios suplementares, em 1990, e que é sempre referida por tantos de nós como demarcadora de algumas das grandes viragens conceituais na reflexão sobre a fotografia, O Ato Fotográfico (Dubois, 2001): já mencionamos, ao menos em seus resultados mais conhecidos, todo o percurso pelo qual este pensador escalonou e valorizou as etapas históricas nas quais a reflexão sobre a fotografia experimentou um certo tipo de paixão (tanto positiva como negativa), com especial respeito às modalidades do realismo que pareceriam propriamente adventícias da fotografia. 

Outra referência fundamental, neste contexto, é a obra de Jean-Marie Schaeffer, A Imagem Precária (Schaeffer, 1996): nascida num contexto similar ao das idéias de Dubois (foi publicada originalmente em 1987), sua linha de argumentação avança mais densamente nas implicações filosóficas da identificação da fotografia com o status semiótico da indexicalidade, introduzindo por isto mesmo variantes da discussão que eram tradicionalmente desconsideradas nesta linhagem de textos sobre uma suposta natureza fotográfica; em primeiro lugar, ele dissocia a questão da ontologia do fotográfico das problematizações sobre o status da imagem fotográfica, o que, ao menos em princípio, facilita consideravelmente a compreensão sobre o modo de abordar a especificidade indexical da fotografia (já que esta, sendo da ordem de uma arché, invoca necessariamente a consideração do lugar mais próprio dos dispositivos fotográficos).

Em ambos os casos, o problema central não é apenas a identificação da fotografia com os índices (não se tenta pensar o essencial da fotografia exclusivamente a partir de seus produtos ou de suas imagens), mas também com o caráter originário do dispositivo fotográfico, como fundamento mesmo deste compromisso existencial de suas formas visuais: nos interessa examinar estas questões, em primeiro lugar avaliando até que ponto a categoria dos signos indexicais precisaria ter sido tratada (ao menos no caso da fotografia) na estrita dependência da caracterização de dispositivos de gênese de formas visuais.

Pois, em nosso modo de entender, a impressão que predomina sobre o argumento do dispositivo (e a evocação que faz de certas categorias semióticas) é a de que a noção mesma de índice não emerge nestes (tampouco em outros textos da mesma orientação) em estrita correlação com a ortodoxia semiótica do conceito: nas considerações sobre a indexicalidade fotográfica, pouca consideração há sobre a história desta idéia, no contexto das teorias lógicas, assim como em suas implicações práticas; elas não são, portanto, correlativas a um exame sobre a natureza mesma dos índices, tomadas como categorias do pensamento ou até mesmo como modelo epistemológico de conjecturas (um “paradigma indiciário”), característica não apenas da lógica da ciência, mas das práticas clínicas e detetivescas, por exemplo (Guinzburg, 1989).

Ao invés disto, predomina uma espécie de viés negativo de sua argumentação, a partir de uma certa lógica excludente da caracterização sobre certos segmentos das tipologias da significação (em especial, aquela que define no universo visual o que é próprio, ora aos índices, ora aos ícones): no fundo do problema da indexicalidade, neste seu registro de traço definidor do caráter mais próprio da fotografia, instala-se portanto a necessidade de firmar a dobra diferencial entre setores específicos da família das formas visuais, necessariamente tomadas como mutuamente exclusivas (caso mais típico, os limites comumente interpostos entre imagens pictóricas e técnicas).

Sintoma desta inclinação teórica para a necessária alternância entre tipologias semióticas é o próprio percurso histórico no interior do qual Dubois constrói (no primeiro capítulo de O Ato Fotográfico) as sucessivas concepções do realismo manifestamente próprio às formas visuais da fotografia: nascendo sob o signo de uma concepção primeiramente “mimética” da imagem (e que ainda se nutre das proximidades de família entre as figuras visuais da fotografia e da pintura), ele alcança sua suposta maturidade ao conceber finalmente o que é próprio da significação fotográfica, instalando-a na ordem do “traço” indexical (Dubois, 2001: 23,56). Portanto, não apenas a mímese e a indexicalidade se constituem em necessária e mútua oposição, como também (de um ponto de vista que agora é axiológico, alem de pretensamente teórico), a categoria do índice exprime um grau mais avançado da reflexão sobre aquilo que é constitutivo da significação visual na fotografia.

Nestes termos, temos aqui ao menos dois aspectos a tomar em consideração, antes de avançarmos na avaliação destas teses: primeiramente, em que sentido propriamente semiótico (ao menos na ortodoxia peirceana, que parece fornecer a matriz através da qual os textos de Dubois e Schaeffer trabalham mais fortemente), se pode admitir esta suposta altercação entre a semelhança icônica (aqui assimilada, talvez indevidamente, à mimese visual) e a implicação existencial ou causal, própria aos ícones? Em segundo lugar, ponto mais afeito ao fenômeno fotográfico mesmo, como pensar este compromisso indexical (supostamente exclusivo da fotografia), quando as formas visuais que a constituem reclamam também critérios de similitude perceptual (mais próprios portanto ao ícone)? Trataremos de cada uma destas questões em separado, começando de imediato pela primeira delas, a saber, até que ponto índices e ícones devem ser tomados em separado (no que concerne uma interrogação sobre o caráter semiósico das formas visuais).

terça-feira, julho 20, 2010

Notas sobre o dispositivo: o fotográfico e a arché

Queridos,

Mais algumas notas referentes à questão do dispositivo, tão aguardada por alguns aqui. Trato aqui das perplexidades dos teóricos da fotografia em desencavar das várias manifestações e regimes nos quais funcionam as imagens fotográficas, a idéia de que há algo como um "fotográfico" que lhe é subjacente, o que é a matriz de um pensamento sobre a arché fotográfica (como manifestas nas teses de Dubois e Schaeffer, em especial).

Divirtam-se,

Benjamim

Continuando...

Há um curioso fenômeno de perplexidade que marca indelevelmente a análise dos produtos da fotografia, quando estes são abordados na condição de fenômenos comunicacionais: quando confrontados com a necessidade de considerar o funcionamento discursivo destas imagens, certos pensadores insistem em sobrepor-lhe o caráter mediático de seus dispositivos de origem; ao falar-se da fotografia na condição de operador de regimes textuais específicos (sobretudo aqueles que são mais aptos ao status comunicacional das formas visuais, no modo como os vislumbramos em nossa cultura: o reportativo, o documental, o retórico, o narrativo, o ficcional, o estético), parece ser algo de inevitável, ao menos para muitas das teorias que estão aqui em jogo, ter que considerar o dispositivo fotográfico, na condição mesma de dado da origem na qual as imagens fotográficas operam discursivamente. 

Há portanto uma implicação ontológica de algo que poderíamos definir como sendo o fotográfico, no modo como cada imagem, assim rendida por processos mecânicos de impregnação luminosa, se oferece ao olhar, na necessária dependência da admissão de um dispositivo que é sua origem mesma.

Há que se notar, em primeiro lugar, que uma tal restituição do valor de sentido e da origem filoniana das imagens a algum dispositivo é algo que demarca, ao menos no conjunto das imagens técnicas, tão somente a análise da fotografia: na teoria do cinema, por exemplo (lugar onde um certo “discurso sobre o dispositivo” manifestou-se com força, servindo até mesmo de inspiração a muitas reflexões similares sobre o fotográfico), a noção de que a experiência fílmica pudesse ser um correlato ou efeito da ordem dos aparatos técnicos ou das instituições culturais jamais se propôs como constituindo in se uma arché do cinema, ou então como sobreposta a toda uma outra ordem de variáveis relativas à experiência concreta (social, cultural, estética) de suas imagens (Xavier, 2005).

De todo modo, já o vimos, é bem notável que o fundamento de todas estas assunções acerca de uma natureza intrínseca da fotografia (e do fato de que a experiência destas imagens, na sua apreensão estética, não chega a transcender a condição na qual o dispositivo se define como tal arché) se manifesta, no mais das vezes, já o dissemos, como mera senciência (uma crença que é originária de um certo encanto com os poderes técnicos da rendição fotográfica ou então com suas possibilidades para a reconfiguração do campo e das instituições artísticas). 

Em suma, neste argumento sobre o dispositivo fotográfico, não se parece oferecer elementos de uma comprovação suficiente sobre aquilo que se afirma por tais teses, ou seja: do fato de que os aparatos e instituições mediáticas da fotografia conferem às imagens, de modo determinante, o valor que somos finalmente capazes de atribuir às suas manifestações mais extremas (a saber, às suas imagens), independentemente dos regimes de discurso e de compreensão em que as representações visuais, assim rendidas, são chamadas a funcionar.

“Nós acordamos assim às imagens um particular valor de veracidade: elas são verdadeiras, por assim dizer, de princípio. O que recobre razões passavelmente diferentes. Poruq eelas nos reportam a como as coisas foram ou como as coisas se passaram. Porque somos assegurados de que são verdadeiras, porque os canais de comunicação pelos quais elas nos chegam são consagrados à informação e, portanto, ‘objetivos’ (…). Para nós, é verdade porque é assim com a imagem, porque foi fotografada ou gravada em video. Frequentemente reportávamos e ainda reportamos esta veracidade particular da imagem fotográfica a seu caráter automático e mecânico da tomada visual e do registro fotográficso, à objetividade da ‘objetiva’, à mistura do real com a impregnação fotográfica (Benjamin), ao caráter de índice do signo fotográfico” (Michaud, 2002: 113).

Ora, até mesmo quando consideramos um outro aspecto muito recorrente no discurso comunicacional sobre as potências da imagem (a saber, o de que sua significação implica  numa redução de seus aspectos propriamente visuais a um sistema de significações “segundo”, oferecido à imagem pelo sistema da língua), verificamos ali também a presença constringente da tese sobre um poder determinante do dispositivo fotográfico, ainda que numa forma subreptícia e como que atenuada: ora, é justamente a crença numa radical indexicalidade originária da imagem fotográfica (devida, por sua vez, à suposta natureza de seu aparato técnico) que conduz uma visão como a da semiologia de primeira geração (emblematizada por Barthes) a se deter na questão de um valor semiologicamente derivado ou deflacionado da imagem (Picado, 2003), enquanto resultado de um processo pelo qual o sentido fortemente denotacional e ostensivo da fotografia (o fato de que ela funciona como “analogon perfeito” da realidade) é como que transpassado pelas (ou revezado com as) funções linguísticas do discurso enunciativo, reportativo ou retórico (Barthes, 1961;1964).

Palestra e Mostra de Video

terça-feira, julho 13, 2010

Notas sobre o dispositivo, o índice e a "arché" fotográfica

Queridos, 


Disposnibilizo aqui, a conta-gotas homeopáticas, as notas que tenho reunido para construir aquele famoso e prometido "argumento contra o dispositivo": bem, no decorrer do tempo, foi se tornando mais um conjunto de notas "sobre o dispositivo", que resultaram num primeiro texto, que submeti ao GT de "Estética da Comunicação", lá tendo bela acolhida.


Enfim, estou construindo estas notas, na perspectiva de gerar dois textos em separado (já tenho quase 30 páginas escritas, alguns já sabem disto) para publicações na área, e meu propósito é de que a junção dos dois seja a introdução de meu livro, com os resultados da pesquisa nesses últimos quase 9 anos. Espero terminar tudo até o fim do ano.


De todo modo, desfrutem destas notas, com carinho (observações e pitacos e críticas são bem-vindos, como sempre). Espero poder postar estas notas aqui nas próximas semanas, portanto fiquem atentos ao blog.


Ad,


Benjamim


Primeiramente, pondo as questões no lugar:



1. “Máquina de esperar”, “depósitos mecânicos de luz”, “relógios de ver”, “engenhos da visualização”, imagens de “gênese automática”, “lápis da natureza”, “camara lucida”, todas estas são expressões que se encontram com freqüência vinculadas a uma extensa amostragem dos discursos que refletiram (e ainda permanecem demarcando o pensamento mais recente) sobre uma suposta natureza da fotografia : estabelecidos como modos de pensar sobre o caráter hipoteticamente determinante de uma suposta arché propriamente fotográfica, estes discursos tentam fixar uma espécie de ontologia característica de certos tipos de representação visual; no caso da fotografia, esta metafísica desponta com uma especial relação de implicação proposta entre o caráter de seus produtos finais (das figuras visuais que lhe são próprias e dos discursos que elas geram ou que podem delas se apropriar) e o fundamento hipotético de seus dispositivos originários de fixação da imagem.

Nestes termos, supõe-se que o fenômeno fotográfico esteja como que previamente justificado neste seu aspecto de rendição instantânea ou de impregnação mecânica do mundo visual numa superfície sensível. Tomada na condição desta sua filogênese, esta fixação momentânea do mundo visual (e o caráter instrumentalizado de sua origem) teria inclusive precedência sobre quaisquer daquelas outras características das formas visuais que emergiram deste processo e dos aparatos aí implicados: mantêm-se fora de questão, portanto, os modos pelos quais a imagem fotográfica entra nos circuitos semióticos que a disparam, especialmente quando estão em jogo os elementos que a transformariam em variável dos processos de comunicação vigentes em nossa cultura e plenamente possibilitados através destas formas visuais (sobretudo quando estes envolve uma dimensão de produção discursiva da visualidade, em suas manifestações mais variadas).

Esta fala tão freqüente sobre a fotografia se sustenta então numa espécie de fenomenologia da instantaneidade nas representações visuais, especialmente quando estas últimas colocam em causa seu valor específico face a outros gêneros da manifestação da visualidade em nossa cultura (em especial, a pintura e o desenho): a fotografia é assim assumida na condição de um tipo de manifestação da discursividade visual cuja experiência é necessariamente marcada pela relação filogenética entre suas imagens e um dispositivo; de fato, é precisamente esta operação de síntese de um fundamento ontológico pela qual se manifesta a origem instantânea da imagem fotográfica (assim como os processos e mecanismos que a engendram) que finalmente suscita a aparente eficácia pela qual esta tese exerceu um determinado poder constringente em quase toda a história da reflexão sobre esse meio de expressão visual, em particular em nosso campo de estudos.

No presente contexto, nos interessa avaliar criticamente alguns dos pressupostos e das estratégias argumentativas sobre as quais este discurso pôde se sustentar, de modo a impedir-nos vislumbrar o fenômeno fotográfico, a não ser na condição de sua determinação por um engenho de visualização. No horizonte deste exame, interessa-nos interpor a estas teses uma proposição teoricamente alternativa, pela qual a questão da significação visual na fotografia possa ser menos assimilada aos entornos mediáticos de seu funcionamento e mais às condicionantes de certos protocolos semiótico-pragmáticos para sua compreensão (ou seja, nos circuitos propriamente comunicacionais em cujo interior vemos assimilada a dimensão aspectualizada da instantaneidade, e com a qual a fotografia é freqüentemente relacionada).

2. A este propósito, algumas ressalvas iniciais são evidentemente necessárias: em primeiro lugar, não supomos com este exame crítico que as teses sobre o dispositivo fotográfico se manifestem, por definição, como genericamente uniformes, em seus respectivos níveis de proposição, assim como em seus efeitos sobre a reflexão acerca da fotografia; como veremos mais adiante, este discurso predominante sobre a natureza da fotografia é motivado por questões de origem muito variada, a depender dos autores e das tradições com as quais trabalharemos neste exame.

E mesmo nos casos em que se pode observar certas linhagens ou escolas de pensamento como subjacentes a estas reflexões, é igualmente considerável a flutuação com a qual a questão das relações entre a gênese automática do processo fotográfico e significação visual das figuras visuais que dele resultam se manifestam concretamente, em cada uma destas teses. Por outro lado (como veremos ao fim deste percurso), notamos em algumas das variantes deste discurso sugestões de problematização que nos parecem absolutamente essenciais para o desenvolvimento de uma abordagem mais fecunda sobre os regimes comunicacionais da imagem fotográfica. Nestes termos, há que se considerar que a tese do dispositivo pode ser, inclusive, preservada, quando depurada dos compromissos que historicamente manteve com a pergunta sobre uma assumida “natureza fotográfica”.

Primeiro ponto a ser destacado em nosso exame critico das teorias da fotografia, portanto: a tese do dispositivo apenas interessa ao viés critico desta intervenção, quando comprometida com a pergunta sobre uma especificidade ontológica do fenômeno fotográfico. Fora deste contexto, veremos mais adiante que ela traz questões com as quais uma teoria da experiência visual da fotografia não pode deixar de se confrontar.

3. Segunda observação, a escolha destes diferentes discursos pode suscitar questões sobre a momentânea oportunidade de sua evocação ao debate, dado supor-se que alguns de seus principais representantes manifestam atualmente certo distanciamento com respeito a elas. Há que se considerar com reservas o efetivo alcance desta rejeição das teses sobre o dispositivo fotográfico, da parte de suas principais figuras, tendo em vista dois fatos fundamentais: no Brasil, por exemplo, algumas destas obras continuam sendo reeditadas (uma das mais importantes delas está em sua 11a edição, no Brasil, datada de 2008), o que significa que, não obstante a declarada auto-proscrição das mesmas, ainda se encontra para elas um fiel público leitor, ainda plenamente apto a subscrever estas mesmas posições originais de seus autores.

Mais importante, entretanto, é o que se depreende da ainda fortíssima influência que muitas destas obras exercem no modo corrente de se pensar sobre o fenômeno fotográfico, em nosso contexto acadêmico, especialmente na formação dos futuros pesquisadores e mesmo na reflexão mais madura sobre a fotografia: não há tese ou dissertação, artigo ou livro, em nosso contexto de reflexão sobre a fotografia (especialmente, quando o acento teórico da discussão é o mais requisitado), em cujas introduções não se recapitule apenas algumas destas idéias centrais; neste contexto, manifesta-se uma adesão quase instantânea à noção de que a natureza da fotografia é, esssencialmente, derivada de seu dispositivo. 


Uma vez portanto que examinamos a permanência deste efeito de um discurso num extenso corpus da produção corrente da pesquisa sobre o assunto, ao menos no contexto acadêmico brasileiro, isto nos faz pensar sobre a autoridade (e, diríamos mais, até mesmo a sinceridade) deste auto-repto feito às teses originárias deste discurso ainda tão forte entre tantos de nós. Isto não obstante, é fato que algumas destas obras representam as etapas iniciais dos percursos de cada um desses autores, o que decerto nos permite conceder alguma reavaliação destas posições iniciais, quando os mesmos são levados a retomá-las em retrospecto. 


Em nosso modo de entender, alguns representantes mais valorosos desta linhagem de reflexões sobre o dipositivo fopográfico prestam um melhor serviço ao debate, justamente quando conseguem preservar aspectos deste argumento, mas orientando-os para uma perspectiva mais associada à dimensão pragmática da experiência das formas visuais fotográficas. Trataremos dos detalhes desta variante, umpouco mais a frente.

4. Já se apelou alhures a este tipo de fala teórica sobre a fotografia pela alcunha de “argumento do dispositivo”, sem que, entretanto, se tenha abordado suas respectivas filigranas históricas e tópicas (Picado, 2005): assim, nos resta ainda oferecer, ao menos em linhas gerais, a substância mesma desta linha temática mais ou menos freqüente no discurso sobre a fotografia, assim como os efeitos que elas exerceram sobre a reflexão acerca deste fenômeno, mais especialmente no que respeita os aspectos plásticos e representacionais e os entornos e regimes comunicacionais da imagem fotográfica.

No início deste percurso, nos interessa examinar um certo conjunto de problemas que marcaram (a ainda marcam) a concepção que estes textos assumem sobre o caráter da imagem fotográfica, na sua relação com esta determinada maneira de conceber sua arché: na origem da significação assumida pela representação visual, haveria portanto uma irrecorrível marca da contigüidade entre o que se deixa render nas formas visuais (a parte da imagem fotográfica) e aquilo que é da ordem dos objetos e arranjos espaciais que são próprios da natureza, das cenas ou dos objetos e entes fotografados (a parte do mundo visual).

Na história da reflexão sobre esta assumida intimidade entre as figuras visuais da rendição fotográfica e o mundo dos objetos (ao menos no caso especial da fotografia), este assombro manifestou-se sob a forma de várias concepções, desde as mais ingênuas até as mais sofisticadas: tomando de empréstimo o arco temporal estabelecido por um conhecido teórico da fotografia, devemos deixar de pensar a imagem como “espelho da natureza” e, sem desconsiderar as variantes que pensam as marcas intencionais da imagem e seu “princípio de construtividade”, passar a refletir sobre ela doravante como um “traço do real”.

“O ponto de partida é portanto a natureza técnica do processo fotográfico, o princípio elementar da impressão luminosa regida pelas leis da física e da química. Em primeiro lugar, o traço, a marca, o depósito (...). Em termos tipológicos, isso significa que a fotografia aparenta-se com a categorias dos ‘signos’, em que encontramos igualmente a fumaça (indício de fogo), a sombra (indício de uma presença), a cicatriz (marca de um ferimento) a ruína (traço do que havia ali), o sintoma (sinal de uma doença), a marca de passos, etc. (....). Nisso, diferenciam-se radicalmente dos ícones (que se definem apenas por uma relação de semelhança) e dos símbolos (que, como as palavras da língua, definem seu objeto por uma convenção geral).” (Dubois, 2001: 50).

Pois bem, nos interessa especialmente avaliar até que ponto a noção de “índice”, tão identificada como o núcleo fenomênico dos processos de gênese fotográfica, não se teria constituído em certas teorias do “ato fotográfico” e de sua arché determinada, como um mero álibi para pensar na imagem fotográfica as forças determinantes do dispositivo. 


Mais grave do que isto, entretanto, estas teses recobrem uma ordem de conteúdos que é mais decorrente de crenças sencientes sobre o realismo visual do que da reflexão propriamente crítica sobre a experiência da imagem fotográfica: por isto mesmo, incorrem não poucas vezes em severas faltas, tanto no que respeita seu débito conceitual para com o significado mesmo de tal “origem” (na definição daquilo que é uma arché fotográfica), assim como sobre a idéia mesma de que se constituem na forma exclusiva do índice visual (naquilo que deve ser considerado independentemente das relações de analogia e de semelhança morfológica, com fundamentos de uma semiose visual, como traços característicos dos signos icônicos, por exemplo).

Portanto, segundo ponto de nossa investigação critica: nos interessa avaliar até que ponto a noção de “índice”, como categoria estritamente semiótica, por sua vez aplicada às figuras visuais oriundas do processo fotográfico (e restituída a suas devidas fontes lógicas, na história da Filosofia), pode ser enfim justificada pela suposição de uma arché que é, por sua vez, identificada com a gênese mecânica da imagem, ou seja, com o dispositivo fotográfico, assim definido.