Aí vão as últimas longas linhas sobre o dispositivo. Pela reação da multidão, ou acertei muito no ponto ou então tá todo mundo dormindo. De toute façon...
Dispositivo e Indexicalidade, ainda.
Neste ponto, é talvez necessário que nos valhamos da perspectiva em que Schaeffer apresenta o problema, para que o ponto sobre a necessária indexicalidade fotográfica se torne um pouco mais claro. Em primeiro lugar, no caso de A Imagem Precária, este argumento se manifesta na base de uma requisição que é antes pragmática (ou fenomenológica) do que histórica: não se trata, portanto, de estipular uma evolução do pensamento sobre a fotografia (para a qual os últimos pontos da cronologia representam o estágio mais avançado da discussão), mas antes pensar em que medida (ou sob que condições) o discurso sobre a indexicalidade pode fazer entrada, sem que o confundamos com outros aspectos mais comuns de nossa experiência ordinária com as formas visuais; assim sendo, pede-nos Schaeffer, é fundamental que, ao refletirmos sobre a fotografia, nos desviemos de considerações sobre a imagem fotográfica, para nos concentrarmos em seu dispositivo (pois, de certo modo, a atenção aos produtos da técnica fotográfica teria confundido-nos sobre o caráter da arché da fotografia, que seria da ordem do índice).
“Para evitar qualquer mal-entendido: a importância que dou à análise da materialidade do dispositivo fotográfico não provém de uma visão reducionista, mas é motivada unicamente pelo fato de que o estatuto pragmático da imagem baseia-se em uma tematização desta materialidade como fundamento de sua especificidade. É ela, por exemplo, que fornece o critério de discriminação que nos permite distinguir a imagem fotográfica da imagem pictórica” (Schaeffer, 1996: 14).
Dubois também identifica (de princípio, ao menos) a indexicalidade fotográfica com o processo automático da gênese de suas figuras visuais (como já o vimos mais acima), o que torna patente a fonte deste tipo de fala sobre a significação visual, manifesta na admissão de que os regimes da imagem são fundamentalmente uma questão de dispositivo. Em Schaeffer, o exame do dispositivo fotográfico nos conduzirá a tomar a experiência das formas visuais dele decorrentes como identificadas com os aparatos que orientam o percurso de um “fluxo fotônico”, incidindo sobre uma matéria sensível e projetada para a visão: o fundamento destas imagens decorrerá do modo como o dispositivo pôde manifestá-las, seja por “reflexo” da luz sobre os objetos, e sua “projeção” em superfícies de visualização (no caso dos formatos impressos das imagens canônicas do fotojornalismo e da fotografia artística) ou por “luminância direta” e “travessia” dos corpos visíveis (caso das fotos solares e das imagens médicas de ressonância ou de raio-X).
Há que se pensar que, ao evocarem para a fotografia esta relação de implicação existencial (sob a insígnia semiótica do índice), Dubois e Schaeffer deveriam considerar até que ponto uma questão de experiência de significação pôde colocar em jogo, de modo tão central e exclusivo, o status determinante de um dispositivo de visualização.
Se a arché fotográfica requisita o lugar do dispositivo, se “a impressão – portanto, a imagem fotônica – constitui o arché da imagem fotográfica, na medida em que esta se define como registro de traços visíveis” (Schaeffer, 1996: 26), pergunta-se se esta é uma questão relativa à dimensão semiósica (ou mesmo estética) da experiência da fotografia: pois, na introdução de seu livro, é o próprio Schaeffer quem reclama para a significação da fotografia a relação de suas imagens com a recepção (poderíamos especificar, com a dimensão hermenêutica da percepção visual). Pois bem, é difícil imaginar como é que a compreensão da fotografia (falamos aqui de suas manifestações mais canônicas, ao menos) poderia pôr em cena a noção de indexicalidade, na absoluta dependência do caráter constitutivo de seus dispositivos técnicos.
Que a semelhança visual (de fundamento icônico) seja, por sua vez, um dado que se possa prescindir logicamente desta relação dos índices fotográficos (o que caracteriza decerto uma possível arché da fotografia) resulta apenas do aspecto pelo qual tematizamos a compreensão da imagem, em contextos específicos (e nos quais necessariamente a percepção pode jogar um papel fundamental, mas sempre restrito a um tipo de adestramento, próprio à interpretação científica ou clínica dos dados visuais, por exemplo): tal nível de conexão existencial é bem exemplificada pelos casos das figuras visuais obtidas por luminância direta ou por transparência; o mesmo não ocorre, quando examinamos as figuras visuais oriundas dos processos de luminância “por reflexo”, pois estas se assemelham aos padrões de visualização das imagens canônicas.
No primeiro caso, podemos até dizer que são casos de uma estrita indexicalidade visual (como no exemplo das manchas de sol na superfície da pele), já que dispensam, ao menos em tese, qualquer recurso a uma idéia canônica de figuratividade visual (ou a uma estrutura da percepção não-especializada e fortemente culturalizada, funcionalmente cifrada como um perceptum visual).
Ainda assim, entretanto, tomadas no rigor da nomenclatura semiótica, estas ocorrências não caracterizam simplesmente “índices”, mas uma classe inteira de signos que é definida como “sinsignos indexicais remáticos”: do ponto de vista de seu fundamento (da referencia a uma qualidade, identificada como veículo de significações), elas constituem uma forma reconhecível (a mancha), que é tomada por sua vez na condição de ser causada por um outro objeto (a luminância direta, da qual a mancha é, agora sim, um índice), finalmente instituindo uma relação possível entre os dois fatos (ele é o termo de uma proposição possível, pela qual a mancha e a luz se implicam na interpretação, como efeito e causa).
Mais importante, segundo Peirce, estes tipos de signos, embora “causados” por seus objetos, não se manifestam sem a concorrência de um “sinsigno icônico” (um signo de fundamento figurativo, pautado por uma relação de semelhança), que se difere dos tipos tradicionais de ícones, por instaurarem uma espécie de semelhança oriunda de algum efeito do objeto dinâmico: exemplo mais patente é o da “figuratividade” pela qual compreendemos as pegadas numa superfície de terra, pela qual inferimos aspectos símiles (icônicos, portanto), que nos entregam inferencialmente algum aspecto ou de caráter do impregnante.
Por seu turno, nos exemplos de signos indexicais que Dubois arrola (numa passagem que já citamos alhures), é igualmente patente que a delimitação do aspecto de conexão física, própria aos índices, pode ser separada de seus efeitos de significação, mas somente mediante arbítrio de análise (e não como suposição de uma efetiva autonomia dos tipos indexicais). Tomemos em causa, a titulo do exame sobre a fotografia, a questão da necessária oposição categorial entre ícone/índice: se considerarmos o caso da impressão fotográfica como correlativo ao fenômeno das sombras (que indicam uma presença) e das cicatrizes (que significam fisicamente uma injúria imposta a um corpo), teremos que admitir que a indexicalidade só diz respeito à porção de questio facti que se interpõe entre a manifestação do signo e sua filogênese (concerne ao fato da natureza, pela qual se define o processo da impregnação luminosa sobre superfícies e dispositivos).
Se considerarmos entretanto estes mesmos fenômenos, agora na perspectiva dos gêneros de percepção pelos qual atribuímos sua realidade como um fato de significação, é evidente que sem a suposição de uma fundamental analogia entre operações e resultados (o tipo de instrumento e a forma da marca, no caso da cicatriz) e de uma semelhança de contornos e de morfologia (os limites sombreados e os contornos do objeto percebido, no caso da sombra), assunção alguma sobre a factual causalidade entre estes signos e sua origem faria sentido, ao menos numa perspectiva lógica da justificação de nossa compreensão visual.
A lição que resta disto tudo diz respeito ao caráter com o qual devemos tratar as categorias semióticas originárias de Peirce, especialmente no modo de abordar os regimes da significação no qual encontramos empenhado o fenômeno comunicacional da fotografia: a simultaneidade de aspectos indexicais ou icônicos nas formas visuais (não obstante seus dispositivos de origem) não apenas é concebível (e o mesmo valeria até para as representações pictóricas, que teriam seu correspondente quinhão de indexicalidade), como também é a única maneira de acessar o fenômeno de significação visual que lhe é próprio, no aspecto através do qual ele se destaca para a análise, ou seja, a partir da “requisição de sua apropriada fenomenologia” (Lopes, 1998).
A seguirmos corretamente os preceitos lógicos das classificações semióticas de Peirce, teríamos que reconhecer que a indexicalidade é constitutiva da origem factual de certos tipos de signos (de sua manifestação conforme uma filogênese), mas insuficiente, por si mesma, para estabelecer um sentido logicamente válido, do ponto de vista de sua compreensão na recepção: supor o contrário seria incorrer naquela conhecida implicação falaciosa de um post hoc, ergo propter hoc, ou seja, tomar a sucessividade causal do processo fotográfico como elemento de justificação sobre o modo como efetivamente atribuímos seu sentido referencial.
Sem o devido concurso da iconicidade (própria aos regimes de configuração sensorial e perceptiva), nenhuma questão de fato se pode interpor, mesmo para os signos genuinamente indexicais. E isto vale igualmente para a compreensão da fotografia, enquanto suposto caso de indexicalidade: em especial, Dubois deveria ter concedido à sua consideração sobre o caráter existencialmente comprometido da fotografia o ponto de que este aspecto de sua significação (tão próprio aos regimes nos quais ela funciona a título de critérios de verdade e de factualidade, como é o caso do fotojornalismo) não é pragmaticamente independente das condições nas quais ele previamente opera como signo icônico (ao menos, na perspectiva de sua recepção canônica).
Ainda na letra de Peirce, por exemplo, as fotografias canônicas são casos exemplares dos “sinsignos dicentes”, ou seja: de uma classe de signos que manifesta-se em seu fundamento (mais uma vez, na referencia à qualidade que lhe serve de motriz signíco), a partir de uma forma visual reconhecível (as figuras dos objetos como rendidas no dispositivo) e instituem um princípio de compreensão associado à ordem das proposições sobre fatos (os entes fotografados são significados pela sua manifesta presença ou pelo caráter significativo do instante de sua rendição). Entretanto, os requisitos desta conexão causal compreendida não são, mais uma vez, exclusivamente indexicais, pois a manifestação dos objetos é conforme um tipo de configuração das qualidades visuais com respeito a uma estrutura da percepção (portanto, manifesta como “sinsigno icônico”).
“Um sinsigno dicente (...) é todo objeto da experiência direta na medida em que é um signo, e como tal, propicia informação a respeito de seu objeto, isto ele só pode fazer por ser realmente afetado por seu objeto, de tal forma que é necessariamente um índice (...). Um signo dessa espécie deve envolver um sinsigno icônico para corporificar a informação e um sisnsigno indicial remático para indicar o objeto ao qual se refere a informação. Mas o modo de combinação, ou a sintaxe, destes dois também deve ser significante.” (Peirce, 1990: 55; 2.257).
Deste modo, ao supor que a categoria do índice seja necessariamente apropriada à explanação dos modos de significação que encontramos associados à fotografia, devemos implicar nesta admissão (ao menos naquilo que pretendemos firmar para a natureza da fotografia) uma relativa independência da significação fotográfica com respeito à natureza de seus dispositivos técnicos. Formulemos melhor este ponto: pensar a questão da arché fotográfica pode decerto reclamar a categoria semiótica do índice como um de seus aspectos mais salientes, mas isto não pode ser confundido em absoluto com a suposição de um caráter determinante do dispositivo fotográfico (e isto vale tanto para o par implicado fotografia/indexicalidade, quanto para seu suposto antípoda pintura/iconicidade).
Se nos reportarmos ao caráter indexical da fotografia, encontraremos a idéia de sua origem muito mais identificada com os fundamentos pragmáticos de um regime experiencial de compreensão das formas visuais (e por conseqüência, com os sistemas de crenças que implicamos no modo de fixar esse aspecto de compromisso ontológico da imagem), do que pela suposição de que esta somente é evocada pelos produtos de um determinado aparato mediático.