Queridos,
Mais algumas notas referentes à questão do dispositivo, tão aguardada por alguns aqui. Trato aqui das perplexidades dos teóricos da fotografia em desencavar das várias manifestações e regimes nos quais funcionam as imagens fotográficas, a idéia de que há algo como um "fotográfico" que lhe é subjacente, o que é a matriz de um pensamento sobre a arché fotográfica (como manifestas nas teses de Dubois e Schaeffer, em especial).
Divirtam-se,
Benjamim
Continuando...
Há um curioso fenômeno de perplexidade que marca indelevelmente a análise dos produtos da fotografia, quando estes são abordados na condição de fenômenos comunicacionais: quando confrontados com a necessidade de considerar o funcionamento discursivo destas imagens, certos pensadores insistem em sobrepor-lhe o caráter mediático de seus dispositivos de origem; ao falar-se da fotografia na condição de operador de regimes textuais específicos (sobretudo aqueles que são mais aptos ao status comunicacional das formas visuais, no modo como os vislumbramos em nossa cultura: o reportativo, o documental, o retórico, o narrativo, o ficcional, o estético), parece ser algo de inevitável, ao menos para muitas das teorias que estão aqui em jogo, ter que considerar o dispositivo fotográfico, na condição mesma de dado da origem na qual as imagens fotográficas operam discursivamente.
Há portanto uma implicação ontológica de algo que poderíamos definir como sendo o fotográfico, no modo como cada imagem, assim rendida por processos mecânicos de impregnação luminosa, se oferece ao olhar, na necessária dependência da admissão de um dispositivo que é sua origem mesma.
Há que se notar, em primeiro lugar, que uma tal restituição do valor de sentido e da origem filoniana das imagens a algum dispositivo é algo que demarca, ao menos no conjunto das imagens técnicas, tão somente a análise da fotografia: na teoria do cinema, por exemplo (lugar onde um certo “discurso sobre o dispositivo” manifestou-se com força, servindo até mesmo de inspiração a muitas reflexões similares sobre o fotográfico), a noção de que a experiência fílmica pudesse ser um correlato ou efeito da ordem dos aparatos técnicos ou das instituições culturais jamais se propôs como constituindo in se uma arché do cinema, ou então como sobreposta a toda uma outra ordem de variáveis relativas à experiência concreta (social, cultural, estética) de suas imagens (Xavier, 2005).
De todo modo, já o vimos, é bem notável que o fundamento de todas estas assunções acerca de uma natureza intrínseca da fotografia (e do fato de que a experiência destas imagens, na sua apreensão estética, não chega a transcender a condição na qual o dispositivo se define como tal arché) se manifesta, no mais das vezes, já o dissemos, como mera senciência (uma crença que é originária de um certo encanto com os poderes técnicos da rendição fotográfica ou então com suas possibilidades para a reconfiguração do campo e das instituições artísticas).
Em suma, neste argumento sobre o dispositivo fotográfico, não se parece oferecer elementos de uma comprovação suficiente sobre aquilo que se afirma por tais teses, ou seja: do fato de que os aparatos e instituições mediáticas da fotografia conferem às imagens, de modo determinante, o valor que somos finalmente capazes de atribuir às suas manifestações mais extremas (a saber, às suas imagens), independentemente dos regimes de discurso e de compreensão em que as representações visuais, assim rendidas, são chamadas a funcionar.
“Nós acordamos assim às imagens um particular valor de veracidade: elas são verdadeiras, por assim dizer, de princípio. O que recobre razões passavelmente diferentes. Poruq eelas nos reportam a como as coisas foram ou como as coisas se passaram. Porque somos assegurados de que são verdadeiras, porque os canais de comunicação pelos quais elas nos chegam são consagrados à informação e, portanto, ‘objetivos’ (…). Para nós, é verdade porque é assim com a imagem, porque foi fotografada ou gravada em video. Frequentemente reportávamos e ainda reportamos esta veracidade particular da imagem fotográfica a seu caráter automático e mecânico da tomada visual e do registro fotográficso, à objetividade da ‘objetiva’, à mistura do real com a impregnação fotográfica (Benjamin), ao caráter de índice do signo fotográfico” (Michaud, 2002: 113).
Ora, até mesmo quando consideramos um outro aspecto muito recorrente no discurso comunicacional sobre as potências da imagem (a saber, o de que sua significação implica numa redução de seus aspectos propriamente visuais a um sistema de significações “segundo”, oferecido à imagem pelo sistema da língua), verificamos ali também a presença constringente da tese sobre um poder determinante do dispositivo fotográfico, ainda que numa forma subreptícia e como que atenuada: ora, é justamente a crença numa radical indexicalidade originária da imagem fotográfica (devida, por sua vez, à suposta natureza de seu aparato técnico) que conduz uma visão como a da semiologia de primeira geração (emblematizada por Barthes) a se deter na questão de um valor semiologicamente derivado ou deflacionado da imagem (Picado, 2003), enquanto resultado de um processo pelo qual o sentido fortemente denotacional e ostensivo da fotografia (o fato de que ela funciona como “analogon perfeito” da realidade) é como que transpassado pelas (ou revezado com as) funções linguísticas do discurso enunciativo, reportativo ou retórico (Barthes, 1961;1964).
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