terça-feira, julho 13, 2010

Notas sobre o dispositivo, o índice e a "arché" fotográfica

Queridos, 


Disposnibilizo aqui, a conta-gotas homeopáticas, as notas que tenho reunido para construir aquele famoso e prometido "argumento contra o dispositivo": bem, no decorrer do tempo, foi se tornando mais um conjunto de notas "sobre o dispositivo", que resultaram num primeiro texto, que submeti ao GT de "Estética da Comunicação", lá tendo bela acolhida.


Enfim, estou construindo estas notas, na perspectiva de gerar dois textos em separado (já tenho quase 30 páginas escritas, alguns já sabem disto) para publicações na área, e meu propósito é de que a junção dos dois seja a introdução de meu livro, com os resultados da pesquisa nesses últimos quase 9 anos. Espero terminar tudo até o fim do ano.


De todo modo, desfrutem destas notas, com carinho (observações e pitacos e críticas são bem-vindos, como sempre). Espero poder postar estas notas aqui nas próximas semanas, portanto fiquem atentos ao blog.


Ad,


Benjamim


Primeiramente, pondo as questões no lugar:



1. “Máquina de esperar”, “depósitos mecânicos de luz”, “relógios de ver”, “engenhos da visualização”, imagens de “gênese automática”, “lápis da natureza”, “camara lucida”, todas estas são expressões que se encontram com freqüência vinculadas a uma extensa amostragem dos discursos que refletiram (e ainda permanecem demarcando o pensamento mais recente) sobre uma suposta natureza da fotografia : estabelecidos como modos de pensar sobre o caráter hipoteticamente determinante de uma suposta arché propriamente fotográfica, estes discursos tentam fixar uma espécie de ontologia característica de certos tipos de representação visual; no caso da fotografia, esta metafísica desponta com uma especial relação de implicação proposta entre o caráter de seus produtos finais (das figuras visuais que lhe são próprias e dos discursos que elas geram ou que podem delas se apropriar) e o fundamento hipotético de seus dispositivos originários de fixação da imagem.

Nestes termos, supõe-se que o fenômeno fotográfico esteja como que previamente justificado neste seu aspecto de rendição instantânea ou de impregnação mecânica do mundo visual numa superfície sensível. Tomada na condição desta sua filogênese, esta fixação momentânea do mundo visual (e o caráter instrumentalizado de sua origem) teria inclusive precedência sobre quaisquer daquelas outras características das formas visuais que emergiram deste processo e dos aparatos aí implicados: mantêm-se fora de questão, portanto, os modos pelos quais a imagem fotográfica entra nos circuitos semióticos que a disparam, especialmente quando estão em jogo os elementos que a transformariam em variável dos processos de comunicação vigentes em nossa cultura e plenamente possibilitados através destas formas visuais (sobretudo quando estes envolve uma dimensão de produção discursiva da visualidade, em suas manifestações mais variadas).

Esta fala tão freqüente sobre a fotografia se sustenta então numa espécie de fenomenologia da instantaneidade nas representações visuais, especialmente quando estas últimas colocam em causa seu valor específico face a outros gêneros da manifestação da visualidade em nossa cultura (em especial, a pintura e o desenho): a fotografia é assim assumida na condição de um tipo de manifestação da discursividade visual cuja experiência é necessariamente marcada pela relação filogenética entre suas imagens e um dispositivo; de fato, é precisamente esta operação de síntese de um fundamento ontológico pela qual se manifesta a origem instantânea da imagem fotográfica (assim como os processos e mecanismos que a engendram) que finalmente suscita a aparente eficácia pela qual esta tese exerceu um determinado poder constringente em quase toda a história da reflexão sobre esse meio de expressão visual, em particular em nosso campo de estudos.

No presente contexto, nos interessa avaliar criticamente alguns dos pressupostos e das estratégias argumentativas sobre as quais este discurso pôde se sustentar, de modo a impedir-nos vislumbrar o fenômeno fotográfico, a não ser na condição de sua determinação por um engenho de visualização. No horizonte deste exame, interessa-nos interpor a estas teses uma proposição teoricamente alternativa, pela qual a questão da significação visual na fotografia possa ser menos assimilada aos entornos mediáticos de seu funcionamento e mais às condicionantes de certos protocolos semiótico-pragmáticos para sua compreensão (ou seja, nos circuitos propriamente comunicacionais em cujo interior vemos assimilada a dimensão aspectualizada da instantaneidade, e com a qual a fotografia é freqüentemente relacionada).

2. A este propósito, algumas ressalvas iniciais são evidentemente necessárias: em primeiro lugar, não supomos com este exame crítico que as teses sobre o dispositivo fotográfico se manifestem, por definição, como genericamente uniformes, em seus respectivos níveis de proposição, assim como em seus efeitos sobre a reflexão acerca da fotografia; como veremos mais adiante, este discurso predominante sobre a natureza da fotografia é motivado por questões de origem muito variada, a depender dos autores e das tradições com as quais trabalharemos neste exame.

E mesmo nos casos em que se pode observar certas linhagens ou escolas de pensamento como subjacentes a estas reflexões, é igualmente considerável a flutuação com a qual a questão das relações entre a gênese automática do processo fotográfico e significação visual das figuras visuais que dele resultam se manifestam concretamente, em cada uma destas teses. Por outro lado (como veremos ao fim deste percurso), notamos em algumas das variantes deste discurso sugestões de problematização que nos parecem absolutamente essenciais para o desenvolvimento de uma abordagem mais fecunda sobre os regimes comunicacionais da imagem fotográfica. Nestes termos, há que se considerar que a tese do dispositivo pode ser, inclusive, preservada, quando depurada dos compromissos que historicamente manteve com a pergunta sobre uma assumida “natureza fotográfica”.

Primeiro ponto a ser destacado em nosso exame critico das teorias da fotografia, portanto: a tese do dispositivo apenas interessa ao viés critico desta intervenção, quando comprometida com a pergunta sobre uma especificidade ontológica do fenômeno fotográfico. Fora deste contexto, veremos mais adiante que ela traz questões com as quais uma teoria da experiência visual da fotografia não pode deixar de se confrontar.

3. Segunda observação, a escolha destes diferentes discursos pode suscitar questões sobre a momentânea oportunidade de sua evocação ao debate, dado supor-se que alguns de seus principais representantes manifestam atualmente certo distanciamento com respeito a elas. Há que se considerar com reservas o efetivo alcance desta rejeição das teses sobre o dispositivo fotográfico, da parte de suas principais figuras, tendo em vista dois fatos fundamentais: no Brasil, por exemplo, algumas destas obras continuam sendo reeditadas (uma das mais importantes delas está em sua 11a edição, no Brasil, datada de 2008), o que significa que, não obstante a declarada auto-proscrição das mesmas, ainda se encontra para elas um fiel público leitor, ainda plenamente apto a subscrever estas mesmas posições originais de seus autores.

Mais importante, entretanto, é o que se depreende da ainda fortíssima influência que muitas destas obras exercem no modo corrente de se pensar sobre o fenômeno fotográfico, em nosso contexto acadêmico, especialmente na formação dos futuros pesquisadores e mesmo na reflexão mais madura sobre a fotografia: não há tese ou dissertação, artigo ou livro, em nosso contexto de reflexão sobre a fotografia (especialmente, quando o acento teórico da discussão é o mais requisitado), em cujas introduções não se recapitule apenas algumas destas idéias centrais; neste contexto, manifesta-se uma adesão quase instantânea à noção de que a natureza da fotografia é, esssencialmente, derivada de seu dispositivo. 


Uma vez portanto que examinamos a permanência deste efeito de um discurso num extenso corpus da produção corrente da pesquisa sobre o assunto, ao menos no contexto acadêmico brasileiro, isto nos faz pensar sobre a autoridade (e, diríamos mais, até mesmo a sinceridade) deste auto-repto feito às teses originárias deste discurso ainda tão forte entre tantos de nós. Isto não obstante, é fato que algumas destas obras representam as etapas iniciais dos percursos de cada um desses autores, o que decerto nos permite conceder alguma reavaliação destas posições iniciais, quando os mesmos são levados a retomá-las em retrospecto. 


Em nosso modo de entender, alguns representantes mais valorosos desta linhagem de reflexões sobre o dipositivo fopográfico prestam um melhor serviço ao debate, justamente quando conseguem preservar aspectos deste argumento, mas orientando-os para uma perspectiva mais associada à dimensão pragmática da experiência das formas visuais fotográficas. Trataremos dos detalhes desta variante, umpouco mais a frente.

4. Já se apelou alhures a este tipo de fala teórica sobre a fotografia pela alcunha de “argumento do dispositivo”, sem que, entretanto, se tenha abordado suas respectivas filigranas históricas e tópicas (Picado, 2005): assim, nos resta ainda oferecer, ao menos em linhas gerais, a substância mesma desta linha temática mais ou menos freqüente no discurso sobre a fotografia, assim como os efeitos que elas exerceram sobre a reflexão acerca deste fenômeno, mais especialmente no que respeita os aspectos plásticos e representacionais e os entornos e regimes comunicacionais da imagem fotográfica.

No início deste percurso, nos interessa examinar um certo conjunto de problemas que marcaram (a ainda marcam) a concepção que estes textos assumem sobre o caráter da imagem fotográfica, na sua relação com esta determinada maneira de conceber sua arché: na origem da significação assumida pela representação visual, haveria portanto uma irrecorrível marca da contigüidade entre o que se deixa render nas formas visuais (a parte da imagem fotográfica) e aquilo que é da ordem dos objetos e arranjos espaciais que são próprios da natureza, das cenas ou dos objetos e entes fotografados (a parte do mundo visual).

Na história da reflexão sobre esta assumida intimidade entre as figuras visuais da rendição fotográfica e o mundo dos objetos (ao menos no caso especial da fotografia), este assombro manifestou-se sob a forma de várias concepções, desde as mais ingênuas até as mais sofisticadas: tomando de empréstimo o arco temporal estabelecido por um conhecido teórico da fotografia, devemos deixar de pensar a imagem como “espelho da natureza” e, sem desconsiderar as variantes que pensam as marcas intencionais da imagem e seu “princípio de construtividade”, passar a refletir sobre ela doravante como um “traço do real”.

“O ponto de partida é portanto a natureza técnica do processo fotográfico, o princípio elementar da impressão luminosa regida pelas leis da física e da química. Em primeiro lugar, o traço, a marca, o depósito (...). Em termos tipológicos, isso significa que a fotografia aparenta-se com a categorias dos ‘signos’, em que encontramos igualmente a fumaça (indício de fogo), a sombra (indício de uma presença), a cicatriz (marca de um ferimento) a ruína (traço do que havia ali), o sintoma (sinal de uma doença), a marca de passos, etc. (....). Nisso, diferenciam-se radicalmente dos ícones (que se definem apenas por uma relação de semelhança) e dos símbolos (que, como as palavras da língua, definem seu objeto por uma convenção geral).” (Dubois, 2001: 50).

Pois bem, nos interessa especialmente avaliar até que ponto a noção de “índice”, tão identificada como o núcleo fenomênico dos processos de gênese fotográfica, não se teria constituído em certas teorias do “ato fotográfico” e de sua arché determinada, como um mero álibi para pensar na imagem fotográfica as forças determinantes do dispositivo. 


Mais grave do que isto, entretanto, estas teses recobrem uma ordem de conteúdos que é mais decorrente de crenças sencientes sobre o realismo visual do que da reflexão propriamente crítica sobre a experiência da imagem fotográfica: por isto mesmo, incorrem não poucas vezes em severas faltas, tanto no que respeita seu débito conceitual para com o significado mesmo de tal “origem” (na definição daquilo que é uma arché fotográfica), assim como sobre a idéia mesma de que se constituem na forma exclusiva do índice visual (naquilo que deve ser considerado independentemente das relações de analogia e de semelhança morfológica, com fundamentos de uma semiose visual, como traços característicos dos signos icônicos, por exemplo).

Portanto, segundo ponto de nossa investigação critica: nos interessa avaliar até que ponto a noção de “índice”, como categoria estritamente semiótica, por sua vez aplicada às figuras visuais oriundas do processo fotográfico (e restituída a suas devidas fontes lógicas, na história da Filosofia), pode ser enfim justificada pela suposição de uma arché que é, por sua vez, identificada com a gênese mecânica da imagem, ou seja, com o dispositivo fotográfico, assim definido.


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