Luz e ambiência plástica do grotesco na publicidade
Angie Biondi (apresentado em 23/09/05)
Estabelecemos como parti pris da observação acerca do grotesco no campo publicitário a sua inscrição como tema de representações visuais num tom digamos, eufemista. A nossa compreensão sobre o que confere a uma imagem sua classificação estética do grotesco é, já, repertoriada por uma série de imagens e outras manifestações artísticas sedimentadas ao longo do tempo; tudo o que nos dirige a uma repulsa, uma abjeção, um espanto ou mesmo um riso satírico. Há toda uma tradição artística, sobretudo dos campos pictórico e literário, que nos conduziu a algum tipo de experiência com o mundo do grotesco. Dos mais conhecidos, Goya ou Brueghel, tanto quanto Edgar Allan Poe, dentre outros, nos possibilitam reconhecer algo muito próximo do grotesco, mas que na publicidade são delimitadas apenas suas nuances, contornos do grotesco que são sugeridos num tipo de regime discursivo muito próprio deste campo; o da retórica. Contudo, nesta visada rápida do tema procuramos nos deter brevemente sobre o modo como o grotesco nos é apresentado (e logicamente, representado) em peças publicitárias a partir da luminosidade empregada à imagem.
Tomamos como exemplo esta peça de campanha da marca Diesel Jeans.
A luz constrói o espaço disponível para aquilo que se reconhece como plano visível da imagem num conjugado entre luz e sombra. Esta combinação modela a forma dos objetos, evidencia contornos e confere certa profundidade à imagem de acordo com as diferentes concentrações no espaço visual, nas regiões que a luz incide. Podemos dizer que o modo como a luz destaca os objetos de cena também estabelece a relação com o espectador, provoca uma posição de interação com aquele que vê a imagem. A luz recorta, modela o plano, e posiciona o espectador para a imagem; é a luz que dispõe seu enquadramento. Trata-se de uma iluminação dirigida, orientada sobre pontos ou aspectos dos corpos cuja gradação marca um determinado aspecto e deixa evidente sua presença de modo incidente e não inerente.
Nesta imagem grotesca os objetos de cena são destacados por um tratamento da luz na peça, eles são sempre banhados pela luz sobre um fundo escuro. Aqueles que são destacados na imagem (nos quais a luz incide) superam o nível de claridade média que possuem os demais objetos. Apenas quando nos aproximamos um pouco mais da imagem começamos a notar outros componentes deste cenário, começamos a explorá-lo de acordo com o que a luz nos permite; braços e pernas esquartejados, uma fornalha, um brilho num plástico preto que sugere o contorno de um corpo envolto dependurado de ponta-cabeça, mas, sobretudo o enfoque na ação que é sugerida: um homem que serra uma parte de um corpo humano.
Todo o espaço é assim marcado por uma penumbra, a imagem é revestida por um aspecto sombrio e o destaque para a ação do personagem sugere, para o espectador, uma tensão representada pela iminência do próximo corte. A parca visibilidade nos dá ainda a impressão de um lugar sujo, cheio do que nos parece ser pedaços de corpos espalhados junto a outros objetos que cobrem o chão, alguns outros pendurados ou fixados pelas paredes do lugar representado. Em toda sua obscuridade, podemos apenas ter uma impressão sobre as coisas ali dispostas, pois esta imagem conta com nossa disposição para ver nela o que apenas nos parece ser “induzida” ou “sugerida” pela ambientação que a luz instaurou previamente, aquilo que Gombrich designou de “princípio do etc”.
Tão logo nos instalemos no local da representação, tão logo somos “acolhidos” pelo ambiente da imagem, os objetos que mal podemos distinguir passam a ser “certos” para nosso reconhecimento. Podemos inferir que são pedaços de corpos humanos ao invés de cogitarmos a possibilidade de ser bonecos, manequins de prova simplesmente, pois só “nos deixamos” sair do efeito de espanto quando percorremos outros elementos da peça, como os textos, a logomarca, enfim. Este jogo ambíguo é explorado como estratégia em muitas outras peças, a tensão que se instaura, para o espectador, fica no limiar entre o ambiente e os objetos (ou personagens), marca uma dualidade entre real e ficcional, entre um estado de lucidez ou consciência e um estado onírico ou fantasioso.
A luz não é dado exterior da imagem, mas é elemento compositivo e que tem uma finalidade específica: a de fixar o tema. O grotesco é representado através da ambiência promovida pelo tipo de luminosidade empregado às imagens, que, neste caso, se relaciona diretamente com o tema figurativizado e lhe confere um sentido. O grotesco observado aqui é muito mais da ordem de uma sensação, da instauração de certo clima sombrio, que produz um efeito de estranhamento ou de um absurdo, quase ‘sinistro’ à imagem, que a pura representação de certos objetos de cena. Podemos constatar, portanto, que a luz goza de certa autonomia na imagem e é através deste elemento que o sentido do grotesco se instaura.
Não devemos esquecer que grotesco vem do italiano grotta, que se remete à gruta, ao obscuro, ao abismal. Portanto, nossa perspectiva em relação à luminosidade segue esta mesma construção de sentido retomada aqui pela publicidade; um elemento plástico que trabalha a imagem para remeter a dimensão duma ambiência noturna, lúgubre, capaz de gerar um tipo específico de efeito ao espectador. Ademais, o que nos constituiu enquanto conhecimento (ainda que medíocre) sobre o grotesco é aqui manifestado pelo que poderíamos chamar de “metáfora da luz”, pois esta há muito é investida de um valor simbólico, a tensão entre luz e trevas sempre representou, em nossa sociedade ocidental cristã, o conflito entre bem e mal, o alto e o baixo; a publicidade apenas nos reenvia a este jogo de forças quando programa seu efeito.
sexta-feira, outubro 07, 2005
terça-feira, agosto 16, 2005
Da iconicidade à plasticidade gráfica do instantâneo:
o mistério do testemunho fotográfico da ação
Jacques-Henri Lartigue, Grand Prix de l'A.C.F. (1912)
Ao nos defrontarmos com este notável exemplar da modernidade, em termos da arte fotográfica (é nestes termos que John Sarkovsky se refere à descoberta que faz de Lartigue, no início dos anos 60 do último século), somos quase sempre tomados, de início, pelo considerável peso dos comentários e críticas, que ressaltam, no fascínio que esta imagem é capaz de nos provocar, a ação indelével do dispositivo de geração, próprio à fotografia: para muitos destes autores, o que se vê na imagem é a comprovação das teses que favorecem o lugar dos mecanismos de captação, próprios ao dispostivo fotográfico, como elementos estruturantes do modo como esta imagem funciona, na perspectiva de seus efeitos de sentido.
Assim sendo, esta sensação de fugacidade e de instantaneidade da ação que a fotografia nos lega não nos seria compreensível, sem a concorrência de um certo saber acerca do dispositivo de gênese da imagem: sem o conhecimento daquilo que Jean-Marie Schaeffer chamava de "arché da fotografia", não teríamos, na visão destes autores, como nos haver com a capacidade desta imagem em especificar um momento da ação, arrestando-a de sua dimensão temporal, mas indexando sua integridade na forma de um instante sugestivo.
De modo a não vagarmos em discussões por demais teóricas, procuremos nos deter sobre esta magnífica imagem, em si mesma. O que vemos aqui? De certo modo, temos ilustrada nesta imagem uma questão que, para certos historiadores da arte (penso especialmente em Gombrich), caracteriza a "dimensão subjetiva do olhar testemunhal" (e que, no caso da pintura, notabilizou-se pela arte do Impressionismo, por sua vez, contemporânea da origem da fotografia). Nesta imagem de Lartigue, o efeito de um certo modo da disposição do aparato fotográfico é o de suscitar uma impressão subjetiva (não necessariamente pessoal ou individual) da velocidade com a qual o bólido se deixa apreender na visão (esta impressão é reforçada, por exemplo, pelo próprio sentido de organização do principal motivo visual da imagem, o automóvel, que se deixa apanhar apenas extremidade final do campo visual, já saindo do espaço de nossa visão).
Neste caso, o fato de que esta maneira de especificar o instante, arrestando-o de sua dimensão temporal, pareça algo exlusiva ao dispositivo fotográfico é de importância relativamente menor, quando comparada com o princípio estrutural da subjetivação desta impressão: aqui (como nas imagens fotográficas do Dia D, por Robert Capa), o caráter de instantaneidade tem menos relação com as propriedades do aparato técnico do que com a necessidade de infundir na apreciação da imagem toda a ordem de sensações que parece marcar a própria relação do olhar com seus motivos (uma espécie de sinestesia visual). Sabemos que, se a fotografia decerto conseguiu especificar um modo de se alcançar este efeito, isto não acarreta grandes alterações, entretanto, no modo de este mesmo efeito se estruturar, uma vez voltado para os repertórios da recepção (basta pensarmos nas imagens impressionistas e nas técnicas de sfumatto, do período da Renascença, para nos darmos conta da extensa linhagem originária deste tipo de imagem).
O aspecto mais interessante desta fotografia, entretanto, não está vinculado às características, digamos, internas, deste ícone: não é portanto, naquilo que podemos supor de iconicamente modelado nesta imagem que reside a força com a qual ela se impõe, para nós (ou, ao menos, para nosso interesse mais específico, a saber, o de avaliar as implicações destas operações modelares em outros contextos discursivos); o que nos interesse apreciar, do ponto de vista da análise da fotografia, são os aspectos de vetorialização da imagem, e que funcionam, por sua vez, como indicadores de uma organização gráfica (ligada aos princípios que regerão sua inserção no espaço da página impressa, à qual a fotografia (e uma série de outros tipos de imagem) podem estar submetidas, sobretudo no contexto da comunicação mediática.
"Hooked on Speed", Life Magazine, 1963
Para analisarmos este ponto, precisamos considerar a fotografia, não apenas na sua constituição enquanto veículo de representação do que quer que seja, mas também como unidade de um discurso visual consideravelmente mais complexo: precisamos avaliar a função desta imagem nos contextos gráficos com os quais ela eventualmente negocia, procurando analisar os sentidos em que aqueles aspectos de sua modelação icônica podem aqui funcionar como índices de seu encaixe no universo gráfico da página. Alguns comentadores fazem apelo à dimensão “tabular” do espaço da página, de modo a atribuir uma função significante ao suporte impresso, função esta que passa a regenciar, inclusive, as apropriações da matéria icônica da fotografia, no contexto enunciativo propriamente dito das matérias jornalísticas.
No caso da foto de Lartigue, em particular, é precisamente esta qualidade de “feliz acidente” da imagem (característica de praticamente toda e qualquer obra-prima do fotojornalismo), com todos os aspectos de incorreção formal aí implicados (a concentração da composição em uma parte específica do plano visual, os problemas de processamento da imagem, a fixação do tema em condições de instabilidade) que confere a ela as qualidades de um ícone que sugere, por assim dizer, sua complementação por um discurso gráfico; a qualidade fisicamente impressa de instantaneidade confere ao ícone uma capacidade de coligar-se ao universo gráfico da imagem que possui paralelos, a meu ver, com a lógica do discurso visual dos quadrinhos, que funciona dentro dos mesmos princípios tabulares de constituição.
Em especial, notamos dois aspectos da imagem que favorecem seu agenciamento plástico, para além das funções puramente icônicas de modelação para a representação: de um lado, o fato de que a concentração da composição se acumula apenas em uma das partes da imagem (o fato de que sentimos um certo desequilíbrio da imagem, em uma das direções apenas do plano) favorece a que o discurso enunciativo explore precisamente o espaço vazio gerado por este modo da composição; em segundo lugar, a vetorialidade da própria imagem favorece a um tipo de efeito, na composição gráfica da página, que sugere o prolongamento da ação capturada, nos planos seguintes (o que se deixa entrever pelo fato de que a composição da página privilegia que a foto esteja no ponto final de nosso vetor habitual de letura, da esquerda para a direita).
o mistério do testemunho fotográfico da ação
Jacques-Henri Lartigue, Grand Prix de l'A.C.F. (1912)
Ao nos defrontarmos com este notável exemplar da modernidade, em termos da arte fotográfica (é nestes termos que John Sarkovsky se refere à descoberta que faz de Lartigue, no início dos anos 60 do último século), somos quase sempre tomados, de início, pelo considerável peso dos comentários e críticas, que ressaltam, no fascínio que esta imagem é capaz de nos provocar, a ação indelével do dispositivo de geração, próprio à fotografia: para muitos destes autores, o que se vê na imagem é a comprovação das teses que favorecem o lugar dos mecanismos de captação, próprios ao dispostivo fotográfico, como elementos estruturantes do modo como esta imagem funciona, na perspectiva de seus efeitos de sentido.
Assim sendo, esta sensação de fugacidade e de instantaneidade da ação que a fotografia nos lega não nos seria compreensível, sem a concorrência de um certo saber acerca do dispositivo de gênese da imagem: sem o conhecimento daquilo que Jean-Marie Schaeffer chamava de "arché da fotografia", não teríamos, na visão destes autores, como nos haver com a capacidade desta imagem em especificar um momento da ação, arrestando-a de sua dimensão temporal, mas indexando sua integridade na forma de um instante sugestivo.
De modo a não vagarmos em discussões por demais teóricas, procuremos nos deter sobre esta magnífica imagem, em si mesma. O que vemos aqui? De certo modo, temos ilustrada nesta imagem uma questão que, para certos historiadores da arte (penso especialmente em Gombrich), caracteriza a "dimensão subjetiva do olhar testemunhal" (e que, no caso da pintura, notabilizou-se pela arte do Impressionismo, por sua vez, contemporânea da origem da fotografia). Nesta imagem de Lartigue, o efeito de um certo modo da disposição do aparato fotográfico é o de suscitar uma impressão subjetiva (não necessariamente pessoal ou individual) da velocidade com a qual o bólido se deixa apreender na visão (esta impressão é reforçada, por exemplo, pelo próprio sentido de organização do principal motivo visual da imagem, o automóvel, que se deixa apanhar apenas extremidade final do campo visual, já saindo do espaço de nossa visão).
Neste caso, o fato de que esta maneira de especificar o instante, arrestando-o de sua dimensão temporal, pareça algo exlusiva ao dispositivo fotográfico é de importância relativamente menor, quando comparada com o princípio estrutural da subjetivação desta impressão: aqui (como nas imagens fotográficas do Dia D, por Robert Capa), o caráter de instantaneidade tem menos relação com as propriedades do aparato técnico do que com a necessidade de infundir na apreciação da imagem toda a ordem de sensações que parece marcar a própria relação do olhar com seus motivos (uma espécie de sinestesia visual). Sabemos que, se a fotografia decerto conseguiu especificar um modo de se alcançar este efeito, isto não acarreta grandes alterações, entretanto, no modo de este mesmo efeito se estruturar, uma vez voltado para os repertórios da recepção (basta pensarmos nas imagens impressionistas e nas técnicas de sfumatto, do período da Renascença, para nos darmos conta da extensa linhagem originária deste tipo de imagem).
O aspecto mais interessante desta fotografia, entretanto, não está vinculado às características, digamos, internas, deste ícone: não é portanto, naquilo que podemos supor de iconicamente modelado nesta imagem que reside a força com a qual ela se impõe, para nós (ou, ao menos, para nosso interesse mais específico, a saber, o de avaliar as implicações destas operações modelares em outros contextos discursivos); o que nos interesse apreciar, do ponto de vista da análise da fotografia, são os aspectos de vetorialização da imagem, e que funcionam, por sua vez, como indicadores de uma organização gráfica (ligada aos princípios que regerão sua inserção no espaço da página impressa, à qual a fotografia (e uma série de outros tipos de imagem) podem estar submetidas, sobretudo no contexto da comunicação mediática.
"Hooked on Speed", Life Magazine, 1963
Para analisarmos este ponto, precisamos considerar a fotografia, não apenas na sua constituição enquanto veículo de representação do que quer que seja, mas também como unidade de um discurso visual consideravelmente mais complexo: precisamos avaliar a função desta imagem nos contextos gráficos com os quais ela eventualmente negocia, procurando analisar os sentidos em que aqueles aspectos de sua modelação icônica podem aqui funcionar como índices de seu encaixe no universo gráfico da página. Alguns comentadores fazem apelo à dimensão “tabular” do espaço da página, de modo a atribuir uma função significante ao suporte impresso, função esta que passa a regenciar, inclusive, as apropriações da matéria icônica da fotografia, no contexto enunciativo propriamente dito das matérias jornalísticas.
No caso da foto de Lartigue, em particular, é precisamente esta qualidade de “feliz acidente” da imagem (característica de praticamente toda e qualquer obra-prima do fotojornalismo), com todos os aspectos de incorreção formal aí implicados (a concentração da composição em uma parte específica do plano visual, os problemas de processamento da imagem, a fixação do tema em condições de instabilidade) que confere a ela as qualidades de um ícone que sugere, por assim dizer, sua complementação por um discurso gráfico; a qualidade fisicamente impressa de instantaneidade confere ao ícone uma capacidade de coligar-se ao universo gráfico da imagem que possui paralelos, a meu ver, com a lógica do discurso visual dos quadrinhos, que funciona dentro dos mesmos princípios tabulares de constituição.
Em especial, notamos dois aspectos da imagem que favorecem seu agenciamento plástico, para além das funções puramente icônicas de modelação para a representação: de um lado, o fato de que a concentração da composição se acumula apenas em uma das partes da imagem (o fato de que sentimos um certo desequilíbrio da imagem, em uma das direções apenas do plano) favorece a que o discurso enunciativo explore precisamente o espaço vazio gerado por este modo da composição; em segundo lugar, a vetorialidade da própria imagem favorece a um tipo de efeito, na composição gráfica da página, que sugere o prolongamento da ação capturada, nos planos seguintes (o que se deixa entrever pelo fato de que a composição da página privilegia que a foto esteja no ponto final de nosso vetor habitual de letura, da esquerda para a direita).
sábado, agosto 13, 2005
O arresto do gesto na fotografia
Ian Bradshaw, The Twickenham Streaker, 1974
O propósito de analisar esta imagem se liga à questão do modo como se relacionam, nas teorias da fotografia, o estatuto do testemunho ocular e a suposta indexicalidade da imagem fotográfica, em virtude da natureza de seu dispositivo mecânico de geração. Em nosso modo de entender, a análise do "efeito de discurso" na fotografia poderia ter relação com formas de apreciá-la que estão ligadas à sua constituição enquanto ícone visual.
Detemo-nos, por ora, na questão do gesto capturado na presente foto ("The Twickenham Streaker", de Ian Bradshaw, 1974), e nas chaves pictóricas que sua apreiação nos faz mobilizar: o valor dos gestos aqui exibidos tem menos relações com os aspectos de dispositivo, que caracterizam a "filogênese" da imagem, e mais com um sistema da representação da atitude humana em cena (muito especialmente, o capítulo dos gestos), e que nos remete aos aspectos de "ontogênese" da fotografia, e que são, por sua vez, relativamemnte independentes de sua relação com seus aparatos técnicos.
Há, em primeiro lugar, uma relação entre o modo do arresto que a imagem propicia aos gestos das personagens, e sua função de indicação de uma atitude discursiva (isto é, o fato de que o gesto suplementa, no corpo da imagem, a informação de que as figuras em cena estão a conversar entre si).
Esta questão do valor discursivo do gesto na representação visual deve ser explorada em dois sentidos principais: em primeiro lugar, há nesta foto um evidente aspecto de retorização visual da atitude humana, associado à incorporação discursiva das atitudes corporais das personagens; seus gestos dizem respeito a uma propriedade da representação das ações humanas que se repercute sobre a expressão propriamente verbal das personagens, no campo das ações; o gesto da mão direita do homem nu tem evidente redundância com o ato mesmo da conversação que ele mantém com o policial.
As formas da realização deste efeito são certamente variáveis: vão desde a pura conceitualidade gestual, na arte cristã do medievo, na qual as atitudes corporais têm a função predominante de fixar o caráter geral das personagens, até o alto grau de individuação psicológica das disposições e de encarnação física das ações, a partir da Renascença. Isto posto, entretanto, não nos resta dúvidas de que reconhecer nos gestos das personagens desta foto seu devido valor retórico não decorre da pregnância com a qual o registro fotográfico as firmou numa superfície sensível, mas dos hábitos perceptivos com os quais reconhecemos o valor de redundância das atitudes corporais das personagens.
Neste nível de sua manifestação, podemos dizer que a gestualidade incorpora-se à compreensão, dado o fato de que a individuação de suas funções é relativa a um sistema de convenções: o gesto da personagem não se confunde com um ato de indicar o que quer que seja, mas com o do protocolo retórico daquele que pede a palavra, ou mesmo a pronuncia. Neste último caso, o gestual adotado tem um sentido de reforço ou de ênfase ao registro propriamente verbal do discurso retórico. Um modo possível de enquadrar este aspecto da significação gestual é o de reconhecer, especialmente em seu emprego na representação visual, sua dimensão de ato ritualizado: na perspectiva de certos historiadores da arte, é o caráter ritualístico de certos gestos que oferece à pintura os materiais pelos quais a apresentação dinâmica dos motivos, na percepção, será selecionada para a representação pictórica.
Mas a questão da representação dos gestos não pode estar restrita ao domínio da convencionalidade da compreensão das atitudes corporais: melhor dizendo, não é apenas por restituir-se à ordem ritualizada dos gestos que o compreendemos, na economia própria do discurso visual; concorrem também para sua visão outros aspectos da expressão gestual, como aqueles que dizem respeito à tradução de estados interiores, de emoções e de disposições à ação.
Seu efeito, no plano da apreciação estética, não é da ordem de uma correspondência com um gesto já codificado no plano de um rito específico (os atos de indicar, orar, cumprimentar, pedir a palavra), mas como tradução de um estado de espírito, por sua vez encarnado em operadores que não são correspondentes a nenhuma destas ações específicas. Na fotografia que analisamos, esta ordem de questões sobre o sentido gestual se deixa verificar pela função que atribuímos às mãos que agarram o personagem principal, à sua direita e à sua esquerda.
Nestes gestos, não encontramos qualquer correspondência ritualística para servir de base à leitura de suas funções no contexto da composição visual: seu sentido mais evidente diz respeito à expressão, iconicamente modelada, de uma certa força física com a qual os soldados detêm a personagem principal. Do ponto de vista da representação, estes gestos possuem um significado que é mais expressional e sintomático do que simbólico (não compreendemos seu sentido por restituí-lo a uma chave interpretativa determinada nas funções ritualísticas do gesto, mas, por participarmos simpaticamente do sofrimento desta personagem).
Começamos a nos restituir lentamente, aqui, ao centro da questão que nos está motivando a tematizar a fotografia na perspectiva do testemunho: trata-se da interrogação sobre o caráter vicário da experiência que esta imagem nos lega; pois, ainda que, no caso da fotografia, ela seja oriunda de um dispositivo que supostamente autentica a realidade (antes de representá-la), no caso do efeito que estes gestos assim fotografados nos suscitam, a estrutura da experiência que lega a estes seu devido valor expressivo é rigorosamente a mesma na qual poderíamos suprir a sensação do padecimento que é própria á experiência afetiva da pintura.
Muito embora, no caso da foto, esta função expressional do gesto não encontre repercussão aparente (por exemplo, numa fisionomia que denote a dor ou o incômodo da personagem em relação a seus antagonistas), ainda assim podemos restituir sua função, na economia da composição, como similar àquela que é típica da iconografia da paixão do Cristo (em Ticiano, por exemplo), e pela qual notamos o sofrimento de Jesus por correlacionarmos suas expressões de dor com a forte ação de seus algozes, expressa visualmente com bastante ênfase: neste ponto, nos damos conta de que a representação dos gestos, longe de apenas nos restituir ao significado mais fortemente normatizado nos ritos, também serve à produção de um efeito de experiência vicária de testemunho, de simpatia sensorial, igualmente através da figuração das ações humanas.
Ian Bradshaw, The Twickenham Streaker, 1974
O propósito de analisar esta imagem se liga à questão do modo como se relacionam, nas teorias da fotografia, o estatuto do testemunho ocular e a suposta indexicalidade da imagem fotográfica, em virtude da natureza de seu dispositivo mecânico de geração. Em nosso modo de entender, a análise do "efeito de discurso" na fotografia poderia ter relação com formas de apreciá-la que estão ligadas à sua constituição enquanto ícone visual.
Detemo-nos, por ora, na questão do gesto capturado na presente foto ("The Twickenham Streaker", de Ian Bradshaw, 1974), e nas chaves pictóricas que sua apreiação nos faz mobilizar: o valor dos gestos aqui exibidos tem menos relações com os aspectos de dispositivo, que caracterizam a "filogênese" da imagem, e mais com um sistema da representação da atitude humana em cena (muito especialmente, o capítulo dos gestos), e que nos remete aos aspectos de "ontogênese" da fotografia, e que são, por sua vez, relativamemnte independentes de sua relação com seus aparatos técnicos.
Há, em primeiro lugar, uma relação entre o modo do arresto que a imagem propicia aos gestos das personagens, e sua função de indicação de uma atitude discursiva (isto é, o fato de que o gesto suplementa, no corpo da imagem, a informação de que as figuras em cena estão a conversar entre si).
Esta questão do valor discursivo do gesto na representação visual deve ser explorada em dois sentidos principais: em primeiro lugar, há nesta foto um evidente aspecto de retorização visual da atitude humana, associado à incorporação discursiva das atitudes corporais das personagens; seus gestos dizem respeito a uma propriedade da representação das ações humanas que se repercute sobre a expressão propriamente verbal das personagens, no campo das ações; o gesto da mão direita do homem nu tem evidente redundância com o ato mesmo da conversação que ele mantém com o policial.
As formas da realização deste efeito são certamente variáveis: vão desde a pura conceitualidade gestual, na arte cristã do medievo, na qual as atitudes corporais têm a função predominante de fixar o caráter geral das personagens, até o alto grau de individuação psicológica das disposições e de encarnação física das ações, a partir da Renascença. Isto posto, entretanto, não nos resta dúvidas de que reconhecer nos gestos das personagens desta foto seu devido valor retórico não decorre da pregnância com a qual o registro fotográfico as firmou numa superfície sensível, mas dos hábitos perceptivos com os quais reconhecemos o valor de redundância das atitudes corporais das personagens.
Neste nível de sua manifestação, podemos dizer que a gestualidade incorpora-se à compreensão, dado o fato de que a individuação de suas funções é relativa a um sistema de convenções: o gesto da personagem não se confunde com um ato de indicar o que quer que seja, mas com o do protocolo retórico daquele que pede a palavra, ou mesmo a pronuncia. Neste último caso, o gestual adotado tem um sentido de reforço ou de ênfase ao registro propriamente verbal do discurso retórico. Um modo possível de enquadrar este aspecto da significação gestual é o de reconhecer, especialmente em seu emprego na representação visual, sua dimensão de ato ritualizado: na perspectiva de certos historiadores da arte, é o caráter ritualístico de certos gestos que oferece à pintura os materiais pelos quais a apresentação dinâmica dos motivos, na percepção, será selecionada para a representação pictórica.
Mas a questão da representação dos gestos não pode estar restrita ao domínio da convencionalidade da compreensão das atitudes corporais: melhor dizendo, não é apenas por restituir-se à ordem ritualizada dos gestos que o compreendemos, na economia própria do discurso visual; concorrem também para sua visão outros aspectos da expressão gestual, como aqueles que dizem respeito à tradução de estados interiores, de emoções e de disposições à ação.
Seu efeito, no plano da apreciação estética, não é da ordem de uma correspondência com um gesto já codificado no plano de um rito específico (os atos de indicar, orar, cumprimentar, pedir a palavra), mas como tradução de um estado de espírito, por sua vez encarnado em operadores que não são correspondentes a nenhuma destas ações específicas. Na fotografia que analisamos, esta ordem de questões sobre o sentido gestual se deixa verificar pela função que atribuímos às mãos que agarram o personagem principal, à sua direita e à sua esquerda.
Nestes gestos, não encontramos qualquer correspondência ritualística para servir de base à leitura de suas funções no contexto da composição visual: seu sentido mais evidente diz respeito à expressão, iconicamente modelada, de uma certa força física com a qual os soldados detêm a personagem principal. Do ponto de vista da representação, estes gestos possuem um significado que é mais expressional e sintomático do que simbólico (não compreendemos seu sentido por restituí-lo a uma chave interpretativa determinada nas funções ritualísticas do gesto, mas, por participarmos simpaticamente do sofrimento desta personagem).
Começamos a nos restituir lentamente, aqui, ao centro da questão que nos está motivando a tematizar a fotografia na perspectiva do testemunho: trata-se da interrogação sobre o caráter vicário da experiência que esta imagem nos lega; pois, ainda que, no caso da fotografia, ela seja oriunda de um dispositivo que supostamente autentica a realidade (antes de representá-la), no caso do efeito que estes gestos assim fotografados nos suscitam, a estrutura da experiência que lega a estes seu devido valor expressivo é rigorosamente a mesma na qual poderíamos suprir a sensação do padecimento que é própria á experiência afetiva da pintura.
Muito embora, no caso da foto, esta função expressional do gesto não encontre repercussão aparente (por exemplo, numa fisionomia que denote a dor ou o incômodo da personagem em relação a seus antagonistas), ainda assim podemos restituir sua função, na economia da composição, como similar àquela que é típica da iconografia da paixão do Cristo (em Ticiano, por exemplo), e pela qual notamos o sofrimento de Jesus por correlacionarmos suas expressões de dor com a forte ação de seus algozes, expressa visualmente com bastante ênfase: neste ponto, nos damos conta de que a representação dos gestos, longe de apenas nos restituir ao significado mais fortemente normatizado nos ritos, também serve à produção de um efeito de experiência vicária de testemunho, de simpatia sensorial, igualmente através da figuração das ações humanas.
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